sábado, 19 de março de 2011

Falácias da Educação: o discurso do Domínio de Sala



Prof.: Epitácio Rodrigues

Qualquer pessoa que conheça minimamente uma escola sabe que o trabalho docente em sala de aula tem uma abrangência e resultado muito limitado. Porém, existe uma prática de transferir ao professor responsabilidades que originariamente não são suas, mas de outros atores do processo educacional. Um exemplo disso é o que acontece com a família que, sociologicamente falando, tem com uma das funções principais a educação dos filhos. Nas palavras de Oliveira, “a função educacional - responsável pela transmissão à criança dos valores e padrões culturais da sociedade; ao cumprir essa função, a família se torna o primeiro agente de socialização do indivíduo”[1] Quando a família não cumpre sua função, compromete o trabalho dos demais atores educacionais. É fundamental deixar isso muito claro, porque nas últimas décadas tem ganhado força, inclusive de repressão ao professor, o discurso do domínio ou falta de domínio de sala. O que faz essa falácia, pedagogicamente infundada, é transferir ao docente uma responsabilidade parental.
O que significa dominar? A primeira observação a ser feita é que o conceito de domínio de sala contraria o projeto de uma educação para a cidadania, preconizada pela LDB Nº 9.394/96, quando afirma: “A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (Art. 2º). Ora, a palavra domínio vem do latim dominus, i, cujo significado básico é: senhor, patrão, dono. Ou seja, termos que reforçam uma idéia de escolae educação medieval, na qual o professor era o magister, tri (de magi [mais] + ter [três] e aluno apenas alumnus (a [partícula de negação] + luminus [luz]): Nessa visão de escola, o professor é o três vezes mais e o aluno o sem brilho, sem luz, o apagado.
O trabalho do professor consiste em ajudar o educando na aprendizagem de certos conteúdos que foram selecionados para a transmissão às novas gerações. Ele deve tornar clara a compreensão desses conteúdos e ao aluno, acima de tudo, compete estar disposto a aprender. Porém, o que o professor encontra dentro das salas de aula são: primeiramente, crianças e adolescentes que estão na escola pressionados pelos pais, preocupados em garantir o benefício do programa Bolsa Família; jovens que buscam apenas um diploma para melhorar o seu currículo, mas não necessariamente a aquisição dos conteúdos exigidos para obtenção daquele certificado. Acrescente-se a isso, o fato dessa geração ser estimulada ao imediatismo, ao momento, sem grandes perspectivas e projetos mais duradouros e consistentes nos quais o saber educacional seja uma mediação. Na escola o que eles têm pela frente é uma proposta educacional na qual só a educação básica tem a duração média de doze anos. Não por nada, muitos jovens deixam o ensino médio regular e ingressam na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Portanto, essa falta de perspectiva do alunado, aliada à quase absoluta ausência de instrumento de intervenção do professor, responsabilizado pelo fracasso de uma política educacional centrada em estatísticas (número de alunos em sala e notas) criam um cenário complexo de fatores deficientes que não tem outra solução, senão transferir ao professor a culpa pelo fracasso da aprendizagem.
É nesse contexto que surge, dentre outros, o discurso do “domínio de sala”. Não existe, de fato, falta de domínio de sala, mas sim indisciplina do aluno: quando este não aprendeu com a família os valores e posturas comportamentais adequados a cada lugar sociológico; quando desconhece a diferença entre contatos primários (espontâneos e informais) e contatos secundários (formais); quando não diferencia espaços informais e espaços formais, portanto não sabe a diferença entre uma sala de aula e uma praça pública; quando não aprendeu valores com respeito à autoridade, disciplina e outros tantos valores necessários a uma socialização saudável.
Portanto, é a família que está fracassando na sua função educacional. Junto a isso, soma-se uma política de desvalorização do educador empreendida pelo Estado e reproduzida pelos seus órgãos estatais de gerenciamento do processo educativo. Noutras palavras, quem o aluno vê dentro da sala de aula? Um profissional sem a devida valorização, respeito e reconhecimento do seu papel seja pelo Estado, seja pela sociedade. Daí a conseqüência é óbvia: como esperar do aluno que prestigie o trabalho docente, quando ele não visualiza muitas possibilidades de vencer na vida pela educação pública, quando vê diante de si um profissional desvalorizado pelo Estado e pela sociedade naquilo que faz. Fica então uma pergunta: como esperar que esse perfil de aluno respeite o trabalho do professor em sala de aula?


[1] OLIVEIRA, Pérsio Santos. Introdução à Sociologia. 25ª ed. São Paulo, Ática, p.162.

2 comentários:

  1. Interessante reflexão caro Epitácio.
    Importante notar a noção de domínio de sala como integrante de um discurso educacional ligado a dominação, opressão, subordinação do educando no processo educativo. Vendo-o como um objeto é muito fácil de identificar o problema, a ferida do sistema educacional.
    A indisciplina tem, sem dúvida, muito pano plano pra manga. Muitos fatores estão relacionados e contribuem diretamente nesse processo.
    Dentre vários destaco o desinteresse pela proposta de entendimento do mundo apresentada hj pela escola pública brasileira, completamente descontextualizada com as formas de vida das populações e desinteressada em promover superação de situações de exploração.
    Para finalizar gostei muito do texto, só podia vir de uma potência como vc.
    Mas, tenho a ousadia de polemizar a idéia, não compreendi bem a frase: "é a família que está fracassando na sua função educacional".
    Não seria uma transferência de culpa.
    Qual modelo educativo a ser "seguido"?
    Existe modelo?

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  2. Caro anderson, gostei das suas observações. Com certeza, são um convite ao aprofundamento da reflexão sobre o assunto.
    Quando falo em fracasso da família penso em duas realidades: primeiro, o fato de não poucas famílias nucleares se iniciam sem um entendimento claro de que, para além da função de satisfação sexual e reprodução, devem preocupar-se em assegurar as condições econômicas - sustento e proteção - e também com educação dos filhos, entendida aqui como partilha e transmissão de valores necessários a uma socialização mais saudável para seus filhos. A outra realidade é dificuldade de motivar os filhos a tornar a educação formal um instrumento viável de luta para a sua condição social e econôminca. Cito um ex-aluno que afirmou certa vez: "não sou rico, não sou bonito, não sei jogar futebol, por isso sei que o caminho para eu vencer na vida é pela educação". esse compromisso vejo-o na sua irmã. Não ignoro os outros fatores, as polaridades da educação e sua parcela de contribuição na reprodução das desigualdades sociais, mas acredito que ela pode ser um caminho viável de ascensão de muitos jovens que já nascem fora dessa sociedade de mercado. Assim, meu bom Anderson, era mais ou menos nisso que estava pensando quando chamei esta minha inquietação de "fracasso da família".

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