sábado, 19 de março de 2011

Falácias da Educação: o discurso do Domínio de Sala



Prof.: Epitácio Rodrigues

Qualquer pessoa que conheça minimamente uma escola sabe que o trabalho docente em sala de aula tem uma abrangência e resultado muito limitado. Porém, existe uma prática de transferir ao professor responsabilidades que originariamente não são suas, mas de outros atores do processo educacional. Um exemplo disso é o que acontece com a família que, sociologicamente falando, tem com uma das funções principais a educação dos filhos. Nas palavras de Oliveira, “a função educacional - responsável pela transmissão à criança dos valores e padrões culturais da sociedade; ao cumprir essa função, a família se torna o primeiro agente de socialização do indivíduo”[1] Quando a família não cumpre sua função, compromete o trabalho dos demais atores educacionais. É fundamental deixar isso muito claro, porque nas últimas décadas tem ganhado força, inclusive de repressão ao professor, o discurso do domínio ou falta de domínio de sala. O que faz essa falácia, pedagogicamente infundada, é transferir ao docente uma responsabilidade parental.
O que significa dominar? A primeira observação a ser feita é que o conceito de domínio de sala contraria o projeto de uma educação para a cidadania, preconizada pela LDB Nº 9.394/96, quando afirma: “A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (Art. 2º). Ora, a palavra domínio vem do latim dominus, i, cujo significado básico é: senhor, patrão, dono. Ou seja, termos que reforçam uma idéia de escolae educação medieval, na qual o professor era o magister, tri (de magi [mais] + ter [três] e aluno apenas alumnus (a [partícula de negação] + luminus [luz]): Nessa visão de escola, o professor é o três vezes mais e o aluno o sem brilho, sem luz, o apagado.
O trabalho do professor consiste em ajudar o educando na aprendizagem de certos conteúdos que foram selecionados para a transmissão às novas gerações. Ele deve tornar clara a compreensão desses conteúdos e ao aluno, acima de tudo, compete estar disposto a aprender. Porém, o que o professor encontra dentro das salas de aula são: primeiramente, crianças e adolescentes que estão na escola pressionados pelos pais, preocupados em garantir o benefício do programa Bolsa Família; jovens que buscam apenas um diploma para melhorar o seu currículo, mas não necessariamente a aquisição dos conteúdos exigidos para obtenção daquele certificado. Acrescente-se a isso, o fato dessa geração ser estimulada ao imediatismo, ao momento, sem grandes perspectivas e projetos mais duradouros e consistentes nos quais o saber educacional seja uma mediação. Na escola o que eles têm pela frente é uma proposta educacional na qual só a educação básica tem a duração média de doze anos. Não por nada, muitos jovens deixam o ensino médio regular e ingressam na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Portanto, essa falta de perspectiva do alunado, aliada à quase absoluta ausência de instrumento de intervenção do professor, responsabilizado pelo fracasso de uma política educacional centrada em estatísticas (número de alunos em sala e notas) criam um cenário complexo de fatores deficientes que não tem outra solução, senão transferir ao professor a culpa pelo fracasso da aprendizagem.
É nesse contexto que surge, dentre outros, o discurso do “domínio de sala”. Não existe, de fato, falta de domínio de sala, mas sim indisciplina do aluno: quando este não aprendeu com a família os valores e posturas comportamentais adequados a cada lugar sociológico; quando desconhece a diferença entre contatos primários (espontâneos e informais) e contatos secundários (formais); quando não diferencia espaços informais e espaços formais, portanto não sabe a diferença entre uma sala de aula e uma praça pública; quando não aprendeu valores com respeito à autoridade, disciplina e outros tantos valores necessários a uma socialização saudável.
Portanto, é a família que está fracassando na sua função educacional. Junto a isso, soma-se uma política de desvalorização do educador empreendida pelo Estado e reproduzida pelos seus órgãos estatais de gerenciamento do processo educativo. Noutras palavras, quem o aluno vê dentro da sala de aula? Um profissional sem a devida valorização, respeito e reconhecimento do seu papel seja pelo Estado, seja pela sociedade. Daí a conseqüência é óbvia: como esperar do aluno que prestigie o trabalho docente, quando ele não visualiza muitas possibilidades de vencer na vida pela educação pública, quando vê diante de si um profissional desvalorizado pelo Estado e pela sociedade naquilo que faz. Fica então uma pergunta: como esperar que esse perfil de aluno respeite o trabalho do professor em sala de aula?


[1] OLIVEIRA, Pérsio Santos. Introdução à Sociologia. 25ª ed. São Paulo, Ática, p.162.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Ética e Moral: o problema etimológico e semântico dos termos



 Prof. Epitácio Rodrigues

Uma pessoa que decide fazer um estudo sobre a ética, logo de início, se depara com um grande desafio: entender o que é ética e sua relação com a moral. Por isso, o nosso primeiro esforço será no sentido de esclarecer as causas dessa dificuldade e fornecer um referencial que possibilite uma noção básica acerca do assunto.
As razões que estão na origem dessa primeira dificuldade são basicamente três: a questão da etimologia do termo ética e suas nuances; a sua tradução do grego para o latim; e a coexistência das duas formas de grafia da palavra e termos derivados em nossa língua.
O termo ética que nós usamos encontra suas raízes mais remotas na cultura grega e é uma transliteração do adjetivo grego ēthiké, cujo sentido básico é “conforme os costumes”. Este adjetivo deriva de ēthos que possui duas grafias: com epsilon (ε) significa “costume” e com eta (η) significava primeiramente “morada, redil” e era usado para se referir ao habitat dos animais e posteriormente passou a designar a  morada humana e finalmente “a maneira humana de ser” do homem, ou “caráter”.
Essa informação é importante, na medida em que deixar entrever, na dupla grafia do termo ethos um aspecto objetivo, enquanto se refere ao conjunto dos costumes, normas, regras estabelecidas e legitimadas pela sociedade, tendo como fim o bem do ser humano, individual e socialmente; mas também um aspecto subjetivo ou caráter, enquanto conduta ou ação dos indivíduos e sua conformidade com tais costumes e normas, sendo cada ato passível de ser submetido à aprovação ou desaprovação do grupo, de acordo com a conformidade ou não com aquilo que está socialmente estabelecido.
Essas duas dimensões do ethos grego são indispensáveis para se entender o que significa ēthiké, pois, na língua grega agir humano era designado com o termo práxis. Então, o sentido pré-filosófico do agir ético - práxis ēthiké - era basicamente “agir de acordo com os costumes socialmente estabelecidos e legitimados”.

Com o surgimento da racionalidade filosófica, sobretudo a partir de Sócrates, a práxis ēthiké passou por uma grande e acurada análise, na qual se buscava investigar os fundamentos e os fins do agir humano. As discussões suscitadas por Sócrates ganharam espaço considerável nos Diálogos de Platão, seu discípulo. Depois dele, Aristóteles dedicou três estudos especialmente voltados para esse tema: a Ética a Eudemo, a Magna Ética e a Ética a Nicômaco. As meticulosas reflexões de Aristóteles, sobre a práxis ēthiké, além de sistematizar o discurso filosófico sobre o assunto, também imprimiu um novo sentido ao termo ēthiké que, de adjetivo, passou à condição de substantivo, designando o estudo sobre o agir humano: seus fundamentos, os valores que lhe servem de alicerce e as mediações concretas de efetivação desses valores na forma de costumes, normas e leis consagradas pela tradição cultural. 
As mudanças no cenário político da Grécia antiga, com o domínio romano, marcaram uma nova fase da reflexão ética. Os romanos embora tenham dominado os gregos pela força das armas, foram subjugados pela força da cultura grega. Assim, os escravos políticos, tornaram-se mestres da cultura. Nesse sentido, são eloquentes as palavras de Cícero, filósofo romano:

Meu filho, faz um ano que você recebe lições de Crátipo, na própria Atenas. Não tenho dúvidas de que fez extenso cabedal de preceitos e regras de moral fornecidos pela filosofia, porque esteve em uma grande cidade, assessorado por um mestre de grande autoridade e capaz de transmitir a mais elevada ciência. (Dos deveres, 2002: 31)

Essa assimilação da cultura grega pelos romanos gerou a necessidade de comunicar em termos latinos as idéias e os conceitos da filosofia helênica. Foi o próprio Cícero quem traduziu o termo ēthiké (ética) pelo termo latino “mos”, “mores” – “costume” -, reduzindo a noção de ética à ciência ou teoria dos costumes.
Mas a tradução é apenas uma das razões de uma discussão sobre a relação entre ética e moral. De fato, o cristianismo nascente, com uma carga cultural acentuadamente semita, começa a se expandir, assimilando, traduzindo e adaptando muitas das categorias filosóficas à mensagem cristã. Esse período, conhecido como Patrística, foi liderado por homens formados nas letras gregas e romanas e as obras eram produzidas tanto em grego quanto em latim. Com a divisão do império romano e a posterior queda do império romano do ocidente, o latim tornou-se a língua oficial da igreja romana; a reflexão sobre a ética na idade media foi toda elaborada a partir das categorias da teologia cristã, e dos sistemas platônicos e aristotélicos traduzidos para a língua latina. (É um sintoma muito interessante o fato dos grandes mestres, Agostinho e Tomás de Aquino não dominarem o grego). As discussões e linguagem da ética foram desenvolvidas a partir do latim.
O fim da idade média e o advento do renascimento representou uma nova fase nessa questão quando os intelectuais, clérigos e leigos, embalados pela volta aos clássicos gregos, passaram a traduzir os textos direto dos originais, transliterando palavras gregas para exprimir conceitos que, na época precedente, eram expressos em latim. Sem falar que aos poucos os autores foram abandonando o latim como a língua culta e começaram a escrever em seus dialetos. A convivência de termos diferentes para significar uma mesma coisa, numa reflexão que exige um considerável rigor de expressão para ser compreendido adequadamente, via de regra, traz muita confusão na hora de definir o que é cada coisa. Foi o que aconteceu com os conceitos de ética e moral e seus correlatos.
Em suma, podemos dizer que o termo ética, passa de um adjetivo derivado de ethos para um substantivo e que sua tradução para o latim dá inicio a uma dificuldade que perdurará até os nossos dias. Esse problema é conhecido como o problema etimológico.
As colocações apresentadas tiveram apenas o objetivo de resenhar a história da dificuldade e fornecer um subsídio necessário para a continuação da discussão.

Humanismo, Ética, liberdade e Alteridade


( seleta de textos para os alunos do 3º ano de Filosofia do Ensino Médio)
Os Constituintes do Campo Ético
Sobre os constituintes do campo ético dirá Chauí: “Para que haja conduta ética é preciso que exista o agente consciente, isto é aquele que conhece a diferença entre o bem e o mal, certo e errado, permitido e proibido, virtude e vicio [...]. O campo ético é, assim, constituído pelos valores e pelas obrigações que formam o conteúdo das condutas morais, isto é, as virtudes. Estas são realizadas pelo sujeito moral, principal constituinte da existência ética [...] O campo ético é, portanto, constituído por dois pólos internamente relacionados: o agente ou sujeito moral e os valores ou virtudes éticas”(Chauí, convite à Filosofia, p. 337-338)
Para Marilena Chauí, “o sujeito ético ou moral, isto é, a pessoa, só pode existir se preencher as seguintes condições: ser consciente de si e dos outros, isto é, ser capaz de reflexão e de reconhecer a existência dos outros como sujeitos éticos iguais a ele; ser dotado de vontade, isto é, de capacidade para controlar e orientar desejos, impulsos, tendências, sentimentos (para que estejam em conformidade com a consciência) e de capacidade para deliberar e decidir entre várias alternativas possíveis; ser responsável, isto é, reconhecer-se como autor da ação, avaliar os efeitos e conseqüências dela sobre si e sobre os outros, assumi-la bem como às suas conseqüências, respondendo por elas; ser livre, isto é, ser capaz de oferecer-se como causa interna de seus sentimentos, atitudes e ações, por não estar submetido a poderes externos que o forcem e o constranjam a sentir, a querer e a fazer alguma coisa. A liberdade não é tanto o poder para escolher entre vários possíveis, mas o poder para autodeterminar-se, dando a si mesmo as regras de conduta”.(Convite à Filosofia, p.337s).

O EXISTENCIALISMO SARTREANO E A LIBERDADE COMO FUNDADORA DO HUMANISMO

O Existencialismo
“O termo existencialismo designa o conjunto de tendências filosóficas que, embora divergentes em vários aspectos, têm na existência humana o ponto de partida e o objeto fundamental de reflexões. Por isso, podemos designá-las mais propriamente filosofias da existência, no plural.
Se refletirmos sobre o que é existir, veremos que existir implica a relação do homem consigo mesmo, com outros seres humanos, com as coisas e com a natureza.
São relações múltiplas, concretas e dinâmicas. E também relações determinadas e indeterminadas, isto é, possíveis de acontecer ou não.
Nas diversas definições elaboradas pelos filósofos existencialistas sobre os esses temas, encontramos algumas concepções básicas, cujo traço comum é a visão dramática do destino do homem. Ilustrativa dessa visão é a frase de Albert Camus (1913-1960): “a única questão filosófica séria é o suicídio”. Vejamos alguns traços que caracterizam o existencialismo:
·                O ser humano é representado como uma realidade imperfeita, aberta e inacabada, que foi “lançada” ao mundo e vive sob riscos e ameaças.
·               A liberdade humana não é plena, mas condicionada às circunstâncias históricas da existência. Nesse sentido, o querer não se identifica ao poder. O homem age no mundo superando ou não os obstáculos que se lhe apresentam.
·               A vida humana não é um caminho linear em direção ao progresso, ao êxito e ao crescimento. Ao contrário, é marcada por situações de sofrimento, como a doença, a dor, as injustiças, a luta pela sobrevivência, o fracasso, a velhice e a morte. Assim, não podemos ignorar o sofrimento humano, a angústia interior, a exploração social. É preciso considerar esses aspectos adversos da vida e encará-los de frente.” (COTRIM,G. Fundamentos da Filosofia, p. 212)

Sartre: algumas informações biográficas.
“Nascido em Paris, Jean Paul Sartre(1905-1980) tornou-se o filósofos mais conhecido da corrente existencialista. Grande parte de sua fama deve-se não propriamente à sua obre filosófica, mas às suas peças de teatro e romances, dentre os quais se destacam A náusea, O muro, A idade da razão, O diabo e o bom Deus.
Sartre recebeu significativa influência filosófica de Heidegger. Durante os anos da segunda Guerra Mundial, participou da luta da resistência francesa contra o nazismo. Também aderiu ao marxismo, considerando-o a filosofia de sua época, mas, diante da intervenção soviética na Hungria, em 1956, rompeu com o Partido Comunista, acusando-o de se desviar do sentido autêntico do marxismo.
Em 1964 foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, mas se recusou a recebê-lo. Não desejava reconhecer a autoridade dos juízes que lhe ofereceram o prêmio nem aderir a essa instituição. (Cotrim, p. 219)

A liberdade e a angústia
“Qual a diferença entre os homens e as coisas? É que o homem é livre. O homem nada mais é do que seu projeto. A palavra pro-jeto significa, etimologicamente, “ser lançado adiante”, assim como o sufixo ex da palavra existir (ex- siste) porque o existir do homem é um “para-si”, ou seja, sendo consciente, o homem é um “ser-para-si” pois a consciência é auto-reflexiva, pensa sobre si mesma, é capaz de pôr-se “fora” de si. Portanto, a consciência do homem o distingue das coisas e dos animais, que são “em-si”, ou seja, como não são conscientes de si, também não são capazes de se colocar “do lado de fora” para se auto-examinarem.
O que acontece ao homem quando se percebe “para si”, aberto à possibilidade de construir ele próprio a sua existência? Descobre que, não havendo essência ou modelo para lhe orientar o caminho, seu futuro se encontra disponível a aberto, estando portanto irremediavelmente “condenado a ser livre”. É o próprio Sartre que cita a frase de Dostoiéviski em Os irmãos Karamazov: “Se Deus não existe, então tudo é permitido”, para relembrar que os valores não são dados nem por Deus nem pela tradição: só ao próprio homem cabe inventá-los.
Se o homem é livre, é consequentemente responsável por tudo aquilo que escolhe e faz. A liberdade só possui significado na ação, na capacidade do homem de operar modificações no real.

A má fé
O homem não é “em-si”, ele é “para-si”, que a rigor não é nada, pois se a consciência não tem conteúdo, não é coisa alguma. Mas esse vazio é justamente a liberdade fundamental do “para-si”, que, movendo-se através das possibilidades, poderá criar-lhe um conteúdo.
Eis que o homem, ao experimentar a liberdade, e ao sentir-se como um vazio, vive a angústia da escolha. Muitas pessoas não suportam essa angústia, fogem dela, aninhando-se na má fé. A má fé é a atitude característica do homem que finge escolher, sem na verdade escolher. Imagina que seu destino está traçado, que os valores são dados; aceitando as verdades exteriores, “mente” para si mesmo, simulando ser ele próprio o autor dos seus próprios atos já que aceitou sem crítica os valores dados. Não se trata propriamente de uma mentira, pois esta supõe os outros para quem mentimos, enquanto a má fé se caracteriza pelo fato de o individuo dissimular para si mesmo com o objetivo de evitar fazer uma escolha da qual possa se responsabilizar.
O homem que recusa a si mesmo aquilo que fundamentalmente o caracteriza como homem, ou seja, a liberdade, torna-se “safado”, “sujo”, pois nesse processo recusa a dimensão do “para-si” e torna-se “em-si”, semelhante às coisas. Perde a transcendência e reduz-se à facticidade. (ARANHA, M.A. Filosofando, p.307)

AS VÁRIAS DIMENSÕES DA LIBERDADE E PROBLEMA DO DETERMINISMO E DO FATALISMO
1. A liberdade
“Liberdade” é um termo que usamos todos os dias como “amor”, “ódio”, “dor”, “paz”, “justiça”, “tempo”, etc., pensando conhecer claramente o seu significado; mas a um exame mais cuidadoso vemos que é difícil dar-lhe uma definição precisa e unívoca, tão variados e diversos são os casos em que nós o usamos. Todavia, existe um número fundamentalmente igual que ocorre constantemente: é a ausência de constrangimento.
Definição
Geralmente com a palavra “liberdade” entendemos ausência de constrangimento (immunitas a coactione, diziam os escolásticos). A coação pode depender de diversas causas e, por isso, podem ser distinguidos vários tipos de liberdade, dos quais os principais são: liberdade física (que é a isenção de constrangimento físico), liberdade moral (que é a isenção da pressão de forças relativas à ordem moral, como prêmios, punições, leis, ameaças, etc.), liberdade psicológica (que é a isenção de impulsos de outras faculdades humanas sobre a vontade para fazê-la agir de uma determinada forma), liberdade política (é a isenção de determinismos políticos), liberdade social (é a ausência de determinismos sociais).
Mais exatamente, a liberdade psicológica (que é aquela da qual nos ocupamos) define-se como capacidade que o homem possui de fazer ou não uma determinada coisa, de cumprir ou não determinada ação, quando já subsistem todas as condições requeridas para agir. É o controle soberano sobre a situação, de forma que a vontade tenha nas suas mãos o poder de fazer pender a agulha da balança de um lado ou do outro. É a senhoria absoluta, o domínio completo de si mesmo, das próprias ações, de tudo o que nos diz respeito.
(MONDIN, Battista. O Homem, quem é ele? São Paulo, paulinas, 1980, pp. 108-109)
2. O fatalismo
Se a liberdade nem sempre é compreendida por cientistas e filósofos, imagine pelas pessoas comuns, que têm muito mais dificuldade em interpretar os complexos fenômenos da realidade. É mais fácil atribui-los simplesmente a entidades transcendentes.
Denomina-se fatalismo ou destino a crença de que os fatos de nossa vida dependem não do exercício de nossa liberdade, mas da vontade de forças superiores, como Deus ou deuses.
É comum encontrarmos pessoas fatalistas. Após tragédias como enchentes e mortes no transito, há sempre alguém para justificar: “tinha de acontecer, era o destino, estava escrito...”.
Às vezes, a intervenção das forças transcendentes ocorre em forma de milagre. Num desastre, por exemplo, morrem todos os passageiros, exceto uma criança. Então, sempre aparece alguém para atribuir a Deus a bondade de ter salvo a criança. O que põe Deus em péssima situação: se salvou a criança, por que deixou morrer seus pais e os outros passageiros?
O caso seguinte chaga a ser hilário. O rabino Nilton Bonder conta que num enterro em dia chuvoso, a viúva, ao ser cumprimentada por ele, disse: “ Rabino, até Deus está chorando”. Alguém ao lado sussurrou: “Quer dizer que quando alguém morre num dia ensolarado, Deus está rindo?”.
O fatalismo é muito mais antigo que o determinismo absoluto. Ela advém certamente da Pré-história. Chegou até nós na forma de narrativas míticas, como a das Moiras gregas. São três irmãs fiandeiras que decidem o destino humano. Cloto faz o fio da vida de cada um; Láquesis determina o comprimento do fio, ou seja, a duração da vida; e Átropos corta o fio quando chega a hora da morte.
Portanto, o nascimento, as condições de vida e a morte dependeriam apenas das temíveis Moiras, palavra que em grego significa destino. Os romanos chamavam as Moiras de Parcas.
A crença no destino nega radicalmente a liberdade humana e é maléfica para a sociedade: se o nosso destino já está predeterminado, para que educar os motoristas? Para que exigir das autoridades a solução das enchentes? Para que lutar por justiça? Para que reivindicar o fim das opressões?
Se não existe liberdade, também não existe responsabilidade. Se somos determinados pelo destino, não há como responsabilizar os desonestos, os exploradores, os ladrões e os assassinos, pois estariam destinados a cometer crimes, sendo, portanto, vítimas.
Os adeptos do fatalismo ignoram que os homens é que constroem e destroem cidades, criam culturas, erguem civilizações, arquitetam guerras e promovem a paz. Apesar dos condicionamentos, o homem se define pela liberdade e pela responsabilidade.

Édipo, vítima do destino
Segundo a mitologia grega, Édipo nasceu com destino de assassinar o pai e casar-se coma mãe.
Sabedores disso, os pais mandaram matá-lo. O encarregado da execução, porém, apiedou-se da criança e deixou-a pendurada pelos pés numa árvore. Um pastor recolheu-a e levou-a para o seu senhor, que não tinha filhos. Assim, Édipo cresceu longe da cidade de seus verdadeiros pais.
Já moço, dirigiu-se a Tebas, cidade onde nascera. No caminho, discutiu como um homem e o matou, sem saber que era o rei de Tebas, seu verdadeiro pai.
À porta da cidade, teve de responder ao enigma de uma esfinge. Se errasse a resposta, seria morto, como muitos já o tinham sido. O enigma era: “Qual é o ser que de manhã tem quatro pés, ao meio-dia, dois, e ao entardecer, três?’. Édipo  acertou ao responder que era o homem,o qual de manhã (na infância) engatinha, ao meio-dia (durante quase toda a vida) anda sobre dois pés e ao entardecer (na velhice) anda sobre dois pés e apoiado na bengala.
Com isso, Édipo entrou como herói em Tebas e, mais tarde, casou-se com a rainha, que era sua própria mãe. Cumpriu-se, assim, o destino.
(CORREIA. Avelino Antonio. O desafio da liberdade: In: Para Filosofar. ed. reform. São Paulo, Scipione, 2007, pp. 88-90)


A Ontologia e a Metafísica na relação Eu e o Outro
A diferença entre metafísica e ontologia
Em E. Dussel, o uso dos termos recebe uma interpretação que dissocia o âmbito metafísico em dois planos irredutíveis. Desde o nível ontológico, os entes permanecem enquadrados no horizonte do ser e refletem “a identidade como origem do mesmo que já se é”. O processo de explicação da realidade inicia-se pelas partes para dirigir-se ao todo, e nisto fica demonstrado que o método ontológico “consiste justamente em saber remeter os entes ou partes do mundo que os funda, os subsistemas ao sistema que é a identidade originária de onde se desprendem, como que por diferença interna, os múltiplos entes ou partes que os constituem”.
Dessas primeiras observações, já se deduz que o discurso dusseliano faz coincidir o sentido de ontologia com as categorias de totalidade, mesmidade e diferença. Conjuga estes termos para mostrar que o ser é idêntico a si mesmo. “o ser é, e é assim tão óbvia e primeiramente como é”. Em base à própria consistência, é o fundamento que compreende a totalidade, o mundo, enquanto é uno. O ser é o fundamento do mundo, o horizonte dentro do qual se vive e no qual as coisas permanecem iluminadas. Mundo, totalidade e ser se identificam a partir de uma coincidência unívoca. O ente se apresenta diferente, vinculado, porém, ao fundamento que o torna compreensível e em dependência do ser do sistema que o funda.
É, no horizonte do mundo enquanto totalidade, que a afirmação de “o Mesmo” ganha consistência. A partir de dentro, desde a interioridade e da própria identidade, os momentos diferenciais procedem. Na totalidade, o Mesmo se fecha num círculo, girando eternamente sem novidade. A aparente novidade de um momento de sua dialética é acidental, pois tudo é um e a verdade é tudo. Em tal movimento neutralizador, a temporalidade histórica é aniquilada e o Mesmo termina por ser o Neutro desde sempre.
A ontologia, ajustada aos conceitos de totalidade e mesmidade, faz emergir algumas conseqüências práticas:
1) A afirmação “o ser é” resume toda a ontologia. E aposição mais adequada diante dele é a atitude reflexiva de contemplá-lo, especulá-lo, que propicia ao dominador permanecer em passiva tranqüilidade, revertendo-se, porém, em opressão para o dominado. É indubitável, então, que a “a gnósis é o ato perfeito do homem ontológico, aristocrático, opressor.
2 ) A ontologia, consequentemente, representa a filosofia do centro, elaborada para justificar a ação dos poderes ditatoriais e dos exércitos imperiais. É o pensamento que expressa o ser do sistema vigente e dominador, legitimado pela asserção: “o centro é, a periferia não é”.
3) O ego cogito é a categoria epistemológica a partir da qual esta ontologia é explicitada com a racionalidade e os ditames do sistema totalitário. Isso ao implica a morte da filosofia como racionalidade critica, e favorece o surgimento da ontologia como ideologia.
A filosofia surge desde a “periferia” política e econômica para depois ser integrada pelo “centro”, entendido como poder político dominante. Ao dirigir-se para o centro e por ele deixar-se envolver, impõe-se como ontologia do sistema vigente, tornando-se a “ideologia das ideologias do império”.
4) em termos concretos, nesta ontologização, a sociedade totalitária impede que a “oposição” seja articulada, orquestrando toda forma de controle sobre os indivíduos. O universo político mantém-se inalterável, as mudanças sociais contidas. Nega o pensar crítico, produzindo uma pseudofilosofia que assume o mundo imperante como o óbvio. O pragmatismo encobre o verdadeiro sentido da práxis, ordenando o sistema social como conjunto de funcionalidades. Instaura-se o regime de guerra como modo permanente para combater a subversão que intencionasse convulsionar o status quo.
Em contrapartida, a metafísica é apreendida sob outra perspectiva, que possibilita a superação do pensamento ontológico. Em conformidade com os postulados da Filosofia da libertação, é a única instância que incute a verdadeira postura do saber pensar, ao pensar o mundo desde a exterioridade alternativa. Estabelece que o ser deve ser pensado a partir da exterioridade que o julga. A metafísica é, essencialmente, o modo de saber pensar o sistema, o mundo, em referência estrita à negatividade ontológica.
A negatividade ontológica indica que o outro como outro é incondicionado, exterior e, por isso, consiste num não-ser. “além do horizonte do ser, o outro é o bárbaro (que não é homem para Aristóteles), ou a mulher na sociedade machista (que é castrada para Freud), ou o órfão que nada é e deve aprender tudo (como o Emílio de Rousseau). Visto que não é, enquanto alteridade da totalidade, pode-se também dizer que é nada. É do nada que aparecem os novos sistemas; novos em sentido metafísico, radical.
A exterioridade se revela, de modo radical, através do outro que se encontra negado, marginalizado pelo sistema que o aliena. Sua feição é a expressão concreta do rosto interpelante do pobre. “Desde o outro como outro, o pobre, liberdade incondicionada por enquanto se despreza sua exterioridade como nada (como inculta, analfabetismo, barbárie), como o nulo, é que surge na história o novo. Por isso, todo sistema futuro realmente resultante de uma revolução subversiva em seu sentido metafísico é analógica: semelhante em algo à totalidade anterior, mas realmente distinta.
Esta concepção tem um valor muito grande: abre o âmbito metafísico para uma dimensão essencial da realidade, que não pode ficar obnubilada, a dimensão social. A realidade da experiência primeira de estar face a face com o outro, com a comunidade, é um acontecimento metafísico inevitável. Neste encontro, o outro sempre se revela como sujeito histórico-social concreto, o qual, na situação de alienação, sempre se encontra violentado em seu ser.
Só que existe uma dificuldade. Na oposição entre metafísica e ontologia, o discurso filosófico bifurca-se em dois modos possíveis de interpretação da realidade. A lógica da totalidade instaura seu discurso desde a identidade ou fundamento para diferença e representa a lógica do totalitarismo, caracterizada pela alienação da alteridade. Alógica da exterioridade, pelo contrário, funda seu discurso apoiando-se na liberdade do Outro, em sua exterioridade. Sua origem é diversa, enquanto é histórica e analítica.
Esta opção, como tal, só é tematizável mediante a opção prévia da afirmação de que a ética é a “filosofia primeira”. Em decorrência deste enfoque angular, o que ocorre é a moralização do âmbito ontológico. A separação justaposta dos dois planos vem privilegiar a metafísica que coincide com a noção de ética, em detrimento da ontologia projetada a ser força negativa ou reduto da perversidade do ser que, pleno de si mesmo, é totalitário.
Esta implicância de retratar a compreensão ontológica, fundada na contraposição de dois termos antagônicos, relança a existência humana num modo de projeção disjuntivo. Ressalta-se, nesta disjunção, a negatividade do ser fechado, absorto pela própria opacidade e, por isso, colidido com aquele que é exterior e idealizado de positividade paradgmática (o não-ser= o pobre).
Na esfera da exterioridade aloja-se o não-ser, que é inconsistente no paradoxo de ser pura projeção ética. Ou seja, o metafísico, formulado desde sua acepção etimológica, pode ser abstraído como “o além”, “o que está fora”, enquanto é exprimível em proposições éticas; contudo, o rosto provocante, no nível ontológico concreto, permanece adentrando no sistema que o condiciona a ser o ente alienado. Na verdade, a metafísica não se sustenta na transcendência de aninhar o não-ser como imagem do próprio nada eticizado. O metafísico, neste caso, corresponde a um punhado de evocações e interpelações sugestivas com efeito moralizante, só que o ser negado continua a ser o que é – totalizado, pelo fato de que a relação coma totalidade é vinculante.
(SILVA, Márcio Bolda. Metafísica e Assombro: curso de ontologia. 2ª ed. São Paulo, Paulus, 1994, pp. 157-164).

Ensaio SOBRE A OPINIÃO

“Ah, como uma cabeça banal se parece com outra! Elas realmente foram todas moldadas na mesma forma! A cada uma delas ocorre a mesma ide...