Filosofia: 1º ano


I. BIMESTRE
I. INTRODUÇÃO À FILOSOFIA
A palavra filosofia
A palavra filosofia é grega. É composta de duas outras: philo e sophia. Philo quer dizer “aquele ou aquela que tem um sentimento amigável”, pois deriva de philia, que significa “amizade e amor fraterno”. Sophia quer dizer “sabedoria” e dela vem a palavra sophós, “sábio”.
Filosofia significa, portanto, “amizade pela sabedoria” ou “amor e respeito pelo saber”, e filósofo, “o que ama ser sábio” ou “tem amizade pelo saber”.
Atribui-se ao filósofo Pitágoras de Samos a invenção da palavra filosofia. Pitágoras teria afirmado que a sabedoria plena e completa pertence aos deuses, mas que os homens podem desejá-la ou amá-la, tornando-se filósofos.
Dizia Pitágoras que três tipos de pessoas compareciam aos jogos Olímpicos (a festa pública mais importante da Grécia, na qual havia competições esportivas, concursos artísticos e teatrais): as que iam para comerciar durante os jogos, ali estando apenas para satisfazer sua própria cobiça, sem se interessar pelos torneios; as que iam para competir e fazer brilhar suas próprias pessoas, isto é, os atletas e artistas (pois, durante os jogos também havia competições de dança,poesia, música, teatro); e as que iam para assistir aos jogos e torneios, para avaliar o desempenho e julgar o valor dos que ali se apresentavam. Esse terceiro tipo de pessoa, dizia Pitágoras, é como o filósofo.
Com isso, Pitágoras queria dizer que o filósofo não é movido por interesses comerciais ou financeiros – não coloca o saber como propriedade sua, como uma coisa para ser comprada e vendida no mercado; também não é movido pelo desejo de competir – não é um “atleta intelectual”, não faz das idéias e dos conhecimentos uma habilidade para vencer competidores; mas é movido pelo desejo de observar, contemplar, julgar e avaliar as coisas, as ações, as pessoas, os acontecimentos, a vida; em resumo, pelo desejo de saber.
A verdade não pertence a ninguém (para ser comerciada) nem é um prêmio conquistado por competição. Ela está diante de todos nós como algo a ser procurado e é encontrada por todos aqueles que a desejarem, que tiverem olhos para vê-la e coragem para buscá-la.
A Filosofia surgiu quando alguns gregos, admirados e espantados com a realidade, insatisfeitos com as explicações que a tradição lhes dera,começaram a fazer perguntas e buscar respostas para elas, demonstrando que o mundo e os seres humanos, os acontecimentos naturais e as coisas da natureza podem ser conhecidos pela razão humana, e que a própria razão é capaz de conhecer-se a si mesma.
Em suma, a Filosofia surgiu quando alguns pensadores gregos se deram conta de que a verdade do mundo e dos humanos não era algo secreto e misterioso, que precisasse ser revelado por divindades a alguns escolhidos, mas que, ao contrário, podia ser conhecida por todos através  das operações mentais de raciocínio; e quando esses pensadores compreenderam que o conhecimento depende apenas do uso correto do pensamento, que permite que a verdade possa ser conhecida por todos.
Esses pensadores descobriram também que a linguagem respeita as exigências do pensamento e que, por esse mesmo motivo, os conhecimentos verdadeiros podem ser transmitidos e ensinados a todos.

O que perguntavam os primeiros filósofos

Por que os seres nascem e morrem? Por que os semelhantes dão origem aos semelhantes, de uma árvore nasce outra árvore, de um cão nasce outro cão, de uma mulher nasce uma criança? Por que os diferentes também fazem surgir os diferentes: o dia faz nascer a noite, o inverno faz surgir a primavera, um objeto escuro clareia com o passas do tempo, enquanto um objeto claro escurece?
Por que tudo muda? A criança se torna adulta, amadurece, envelhece e desaparece. A paisagem, cheia de flores na primavera, vai perdendo o verde e as cores no outono, até ressecar-se e retorcer-se no inverno. Por que um dia luminoso e ensolarado, de céu azul e brisa suave, repentinamente se torna sombrio, coberto de nuvens, varrido por ventos furiosos, tomado pela tempestade, pelos raios e trovões?
Por que a doença invade os corpos, rouba-lhes a cor, a força? Por que o alimento que antes me agradava, agora, que estou doente, me causa repugnância? Por que o som da música que antes me embalava, agora, que estou doente, parece um ruído insuportável?
Por que o que parecia uno se multiplica em tantos outros? De uma só árvore, quantas flores e quantos frutos nascem! De uma só gata, quantos gatinhos nascem!
Por que as coisas se tornam opostas ao que eram? A água do copo, tão transparente e de boa temperatura, torna-se uma barra dura e gelada, deixa de ser líquida e transparente para tornar-se sólida e acinzentada. O dia, que começa frio e gelado, pouco a pouco se torna quente e cheio de calor.
Por que nada permanece idêntico a si mesmo? De onde vêm os seres? Para onde vão, quando desaparecem? Por que se transforma? Por que se diferenciam uns dos outros?
Mas, também, por que tudo parece repetir-se? Depois do dia, a noite; depois da noite, o dia. Depois do inverno, a primavera, depois da primavera, o verão, depois deste, o outono, e depois deste, novamente o inverno. De dia, o sol; à noite, a lua e as estrelas. Na primavera, o mar é tranqüilo e propício à navegação; no inverno, tempestuosos e inimigos dos homens. O calor leva as águas para o céu e as traz de volta pelas chuvas. Ninguém nasce adulto ou velho, mas sempre criança, que se torna adulto e velho.
Foram perguntas como essas que os primeiros filósofos fizeram e para elas buscaram respostas.
Sem dúvida, a religião, as tradições e os mitos explicavam todas essas coisas, mas suas explicações já não satisfaziam aos que interrogavam sobre as causas da mudança, da permanência, da repetição, da desaparição e do ressurgimento dos seres. Suas respostas haviam perdido a força explicativa, não convenciam nem satisfaziam a quem desejava conhecer a verdade sobre o mundo.

O nascimento da Filosofia

Os historiadores da Filosofia dizem que ela possui data e local de nascimento: fim do século VII a.C. e início do século VI a.C., nas colônias gregas da Ásia Menor, na cidade de Mileto. E o primeiro filósofo foi Tales de Mileto.
Além de possuir data e local de nascimento e de possuir seu primeiro autor, a Filosofia possui um conteúdo preciso ao nascer: é uma cosmologia. A palavra cosmologia é composta de duas outras: cosmo (kósmos), que significa “ordem e organização do mundo” ou “o mundo ordenado e organizado”, e logia, que vem da palavra logos, que significa “pensamento racional, discurso racional, conhecimento”. Assim, a Filosofia nasce como conhecimento racional da ordem do mundo ou da natureza, donde cosmologia.
Ao nascer, a Filosofia tem dívidas coma sabedoria dos orientais, não só porque as viagens colocaram os gregos em contato com os conhecimentos produzidos por outros povos (egípcios, persas, babilônios, assírios e caldeus), mas também porque os dois maiores formadores da cultura grega antiga, os poetas Homero e Hesíodo, encontraram nos mitos e nas religiões dos povos orientais e nas culturas que precederam a grega os elementos para elaborar a mitologia grega, que, depois, seria transformada racionalmente pelos filósofos.
Os gregos, porém, imprimiram mudanças profundas ao que receberam do Oriente e das culturas precedentes. Dessas mudanças, podemos mencionar quatro, que nos dão uma idéia da originalidade grega:

1. Com relação aos mitos: quando comparamos os mitos orientais, cretenses, micênicos, minóicos e os que aparecem nos poetas Homero e Hesíodo, vemos que eles retiraram os aspectos apavorantes e monstruosos dos deuses e do início do mundo; humanizaram os deuses, divinizaram os homens; deram racionalidade as narrativas sobre as origens das coisas, dos homens, das instituições humanas (como trabalho, as leis, a moral).

2. Com relação aos acontecimentos: os gregos transformaram em ciência (isto é, num conhecimento racional, abstrato e universal) aquilo que eram elementos de uma sabedoria prática para o uso direto da vida. Assim, transformaram em matemática o que os egípcios praticavam como agrimensura para medir, contar e calcular; transformaram em astronomia a astrologia praticada por caldeus e babilônios como adivinhação e previsão do futuro; transformaram em medicina aquilo que, as culturas precedentes, eram práticas de grupos religiosos secretos para a cura misteriosa das doenças.

3. Com relação à organização social e política: os gregos não inventaram apenas a ciência ou a filosofia, mas inventaram também a política. Todas as sociedades anteriores a eles conheciam a praticavam a autoridade e o governo, mas não inventaram a política propriamente dita, porque não separavam o poder político de duas outras formas tradicionais de autoridade: o poder privado do chefe de família e o poder religioso do sacerdote ou mago.
De fato, nas sociedades orientais e não-gregas, o poder e o governo eram exercidos como autoridade absoluta da vontade pessoal e arbitrária de um só homem ou de um pequeno grupo de homens que possuíam o poder militar, religioso e econômico e decidiam sobre tudo, sem consultar ninguém e sem justificar suas decisões para ninguém.
Os gregos inventaram a política (do grego polis, cidade organizada por leis e instituições”) porque instituíram práticas pelas quais as decisões eram tomadas com base em discussões e debates públicos e erma adotadas ou revogadas por voto em assembléias públicas; porque estabeleceram instituições públicas (tribunais, assembléias, separação entre autoridade do chefe de família e autoridade pública, entre autoridade político-militar e autoridade religiosa); e, sobretudo, porque criaram a idéia da lei e da justiça como expressões da vontade coletiva pública, e não como imposição da vontade de um só ou de um grupo, em nome de divindades.

4. Com relação ao pensamento; diante da herança recebida, os gregos inventaram a idéia ocidental da razão como um pensamento sistemático que segue necessariamente regras, normas e leis universais.

1. A consciência mítica: dimensão criativa e instigadora do imaginário

 

Mito e Filosofia

Os historiadores da Filosofia indagam se ela nasceu realizando uma transformação gradual sobre os mitos gregos ou produzindo uma ruptura radical com os mitos.
O que é um mito?
Mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens, da plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos, do bem e do mal, da morte, etc.)
Quem narra o mito? O poeta-rapsodo. Quem é ele? Por que tem autoridade? Acredita-se que o poeta é um escolhido dos deuses, que lhe mostram os acontecimentos passados e permitem que ele veja a origem de todos os seres e de todas as coisas para que possa transmiti-la aos ouvintes. Sua palavra – o mito- é sagrada porque vem de uma revelação divina. O mito é, pois, incontestável e inquestionável.
Como o mito narra a origem do mundo e de tudo o que nele existe?
De três maneiras principais:
1. Encontrando o pai e a mãe das coisas e dos seres, isto é, tudo o que existe decorre de relações sexuais entre forças divinas pessoais. Essas relações geram os demais deuses: os titãs (seres semi-humanos e semidivinos), os heróis (filhos de um deus com uma mulher humana ou de uma deusa com um humano), os humanos, os metais, as plantas, os animais, as qualidades (como quente e frio, seco e úmido, claro e escuro, bom e mal, justo e injusto, belo e feio, certo e errado, etc.).
A narração da origem é assim, uma genealogia, isto é, uma narrativa da geração dos seres, das coisas, das qualidades por outros seres, que são pais ou antepassados.

2. Encontrando uma rivalidade ou uma aliança entre os deuses que faz surgir alguma coisa no mundo. Nesse caso, o mito narra ou uma guerra entre as forças divinas, ou uma aliança entre elas para provocar alguma coisa no mundo dos homens.
É assim, por exemplo, que o poeta Homero, na Ilíada, que narra a guerra de Tróia, explica por que, em certas batalhas, os troianos eram vitoriosos e, em outras, a vitória cabia aos gregos. Os deuses estavam divididos. A cada vez, o rei dos deuses, Zeus, ficava com um dos partidos, aliava-se comum grupo de fazia um dos lados vencer uma batalha.
A causa da guerra, aliás, foi uma rivalidade entre as deusas. Elas apareceram em sonho para o príncipe troiano Paris, oferecendo a ele seus dons, e ele escolheu a deusa do amor, Afrodite. As outras deusas, enciumadas, o fizeram raptar a grega helena, mulher do general grego Menelau. Isso deu início à guerra entre os humanos.

3. Encontrando as recompensas ou castigos que os deuses dão a quem os desobedece ou a quem os obedece. Como o mito narra, por exemplo, o uso do fogo pelos homens? Para os homens, o fogo é essencial, pois com ele se diferenciam dos animais, porque tanto passa a cozinhar os alimentos, a iluminar caminhos na noite, a se aquecer no inverno quanto podem fabricar instrumentos de metal para o trabalho e para a guerra. O mito conta que um titã, Prometeu, mais amigo dos homens do que dos deuses, roubou uma centelha de fogo e a trouxe de presente para os humanos. Prometeu foi castigado (amarrado num rochedo para que as aves de rapina, eternamente, devorassem seu fígado) e os homens também.
Qual foi o castigo dos homens? Os deuses criaram uma mulher encantadora, Pandora, a quem foi entregue uma caixa que conteria coisas maravilhosas, mas que nunca deveria ser aberta. Pandora foi enviada aos humanos e, cheia de curiosidade e querendo dar a eles as maravilhas, abriu a caixa. Dela saíram todas as desgraças, doenças, pestes, guerras e, sobretudo, a morte. Explica-se, assim, a origem dos males no mundo.

2. Cosmogonias e Teogonia

Vemos, portanto, que o mito narra a origem das coisas por meio de lutas, alianças e relações sexuais entre forças sobrenaturais que governam o mundo e o destino dos homens. Como os mitos sobre a origem do mundo são genealogias, diz-se que são cosmogonias e teogonias.
A palavra gonia vem de duas palavras gregas: do verbo gennao (engendrar, gerar, fazer nascer e crescer) e do substantivo genos (nascimento, gênese, descendência, gênero, espécie). Gonia, portanto, quer dizer “geração, nascimento a partir da concepção sexual e do parto”. Cosmos, como já vimos, que dizer “mundo ordenado e organizado”. Assim, a cosmogonia é a narrativa sobre o nascimento e a organização do mundo a partir de forças geradoras (pai e mãe) divinas.
Teogonia é uma palavra composta de gonia e theos, que, em grego, significa “as coisas divinas, os seres divinos, os deuses”. A teogonia é, portanto, a narrativa da origem dos deuses a partir de seus pais antepassados.
Qual é a pergunta dos estudiosos? É a seguinte: ao surgir, a Filosofia não é uma cosmogonia, e sim uma cosmologia, uma explicação racional sobre a origem do mundo e sobre as causas das transformações e repetições das coisas; mas a cosmologia nasce de uma transformação gradual dos mitos ou de uma ruptura radical com os mitos? A filosofia continua ou rompe com a cosmogonia e a teogonia?
Os estudiosos chagaram à conclusão de que as contradições e limitações dos mitos para explicar a realidade natural e humana levaram a Filosofia a retomá-los, porém reformulando e racionalizando as narrativas míticas, transformando-as numa explicação inteiramente nova e diferente.
Quais são as diferenças entre Filosofia e mito? Podemos apontar três como as mais importantes:

1. O mito pretendia narrar como as coisas eram ou tinham sido no passado imemorial, longínquo e fabuloso, voltando-se para o que era antes que tudo existisse tal como existe no presente; a Filosofia, ao contrário, se preocupa em explicar como e por que, no passado, no presente e no futuro, as coisas são como são.

2. O mito narrava a origem por meio de genealogias e rivalidades ou alianças entre forças divinas sobrenaturais e personalizadas; a Filosofia, ao contrário, explica a produção das coisas por elementos naturais primordiais (água ou úmido, fogo ou quente, ar ou frio, terra ou seco), por meio de causas naturais e impessoais (ações e movimentos de combinação, composição e separação ente os quatro elementos primordiais).
Assim, por exemplo, o mito falava nos deuses Urano, Ponto e Gaia; a Filosofia fala em céu, mar e terra. O mito narrava a origem dos seres celestes, terrestres e marinhos pelos casamentos de Gaia (a terra) com Urano (o céu) e Ponto (o mar).
A Filosofia explica o surgimento do céu, do mar e da terra e dos seres que neles vivem pelos movimentos e ações de composição, combinação e separação dos quatro elementos – úmido, seco, quente e frio.

3. O mito não se importava com contradições, com o fabuloso e o incompreensível, não só porque esses eram traços próprios da narrativa mítica, como também porque a confiança e a crença no mito vinham da autoridade religiosa do narrador.
A Filosofia, ao contrário, não admite contradições, fabulação e coisas incompreensíveis, mas exige que a explicação seja coerente, lógica e racional; além disso, a autoridade da explicação não vem da pessoa do filósofo, mas da razão, que é a mesma em todos os seres humanos.

3. Condições históricas para o surgimento da Filosofia

Podemos apontar como principais condições históricas para o surgimento da Filosofia na Grécia:
·   As viagens marítimas, que permitiram aos gregos descobrir que os locais que os mitos diziam habitados por deuses e titãs eram, na verdade, habitados por outros seres humanos, e que as regiões dos mares que os mitos diziam habitados por monstros e seres fabulosos não possuíam nem monstros nem seres fabulosos. As viagens produziram o desencantamento ou a desmistificação do mundo, que passou, assim, a exigir uma explicação sobre a sua origem –explicação que o mito já não podia oferecer;
·    a invenção do calendário, que é uma forma de calcular o tempo segundo as estações do ano, as horas do dia, os fatos importantes quês e repetem, revelando, com isso, uma capacidade de abstração nova, ou uma percepção do tempo como algo natural, e não como uma força divina incompreensível;
·   a invenção da moeda, que permitiu uma forma de troca que não se realiza como escambo ou em espécie (isto é, coisas trocadas por outras coisas), e sim uma troca abstrata, uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante das coisas diferentes, revelando,portanto, uma nova capacidade de abstração e de generalização;
·   o surgimento da vida urbana, com predomínio do comércio e do artesanato, desenvolvendo técnicas de fabricação e de troca e diminuindo o prestígio das famílias da aristocracia proprietária de terras, por quem e para quem os mitos foram criados; além disso, o surgimento de uma classe de comerciantes ricos, que precisava encontrar pontos de poder e prestígio para suplantar o velho poderio da aristocracia de terras e de sangue, fez com que se procurasse o prestígio pelo patrocínio e estimulo às artes, ás técnicas e aos conhecimentos, favorecendo um ambiente onde a Filosofia poderia surgir;
·    a invenção da escrita alfabética, que, como a do calendário e a da moeda, revela a crescimento da capacidade de abstração e de generalização, uma vez que a escrita alfabética ou fonética, diferentemente de outras escritas – como, por exemplo, os hieróglifos dos egípcios ou os ideogramas dos chineses -, supõe que não se represente uma imagem da coisa que está sendo dita, mas que se ofereça um sinal ou signo abstrato (uma palavra) dela.
Além disso, enquanto nas outras escritas, a cada sinal corresponde uma coisa ou idéia, na escrita alfabética ou fonética as letras são independentes e podem ser combinadas de formas variadas em palavras, e estas podem ser distribuídas de formas variadas para exprimir idéias. Ou seja, nas outras escritas, o signo representa a coisa assinalada; na escrita alfabética, a palavra designa uma coisa e exprime uma idéia.
Nas outras escritas, há a tendência de sacralizar os sinais ou os signos ou de lhes dar um caráter mágico (acredita-se que eles são as coisas assinaladas e que neles forças divinas e demoníacas encarnam, de maneira que quem sabe escrever ou usar sinais tem poder sobre as coisas e sobre os outros), enquanto a escrita alfabética é inteiramente leiga, abstrata, racional e usada por todos;
·   a invenção da política, que introduz três aspectos novos e decisivos para o nascimento da Filosofia:
1. A idéia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que decide por si mesma o que é melhor para si e como ela definirá suas relações internas. O aspecto legislado e regulado da cidade – da pólis – servirá de modelo para a Filosofia propor o aspecto legislado, regulado e ordenado do mundo como um mundo racional.

2. O surgimento de um espaço público, que faz aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso, diferente daquele que era proferido pelo mito.
Neste, um poeta-vidente, que recebia das deusas ligadas à memória (a deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que guiavam o poeta) uma iluminação misteriosa ou uma revelação sobrenatural, dizia aos homens quais eram as decisões dos deuses que eles deveriam obedecer.
Agora, com a polis, isto é, a cidade política, surge a palavra como direito de cada cidadão de emitir em público sua opinião, discuti-la com os outros, persuadi-los a tomar uma decisão proposta por ele, de tal modo que surge o discurso político como humana compartilhada, como diálogo, discussão e deliberação humana, isto é, como decisão racional e exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa.
A política, valorizando o humano, o pensamento, a discussão, a persuasão e a decisão racional, valorizou a pensamento racional e criou condições para que surgisse o discurso ou a palavra filosófica.

3. A idéia de discussão pública das opiniões e idéias, pois a política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados por seitas secretas dos iniciados em mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário, ser públicos, ensinados, transmitidos, comunicados e discutidos.

A idéia de um pensamento que todos podem compreender e discutir, que todos podem comunicar e transmitir, é fundamental para a Filosofia.

O legado da Filosofia grega para o Ocidente europeu

Entendida como aspiração ao conhecimento racional, lógico, demonstrativo e sistemático da realidade natural e humana, da origem e das causas da ordem do mundo e de suas transformações, da origem e das causas das ações humanas e do pensamento, a Filosofia é uma instituição cultural tipicamente grega que, por razões históricas e políticas, veio a tornar-se, no corre dos séculos, o modo de pensar e de se exprimir predominante da chamada cultura européia ocidental, da qual, em decorrência da colonização européia das Américas, nós também fazemos parte – ainda que de modo inferiorizado e colonizado.
Dizer que a Filosofia é tipicamente grega não significa, evidentemente, que os outros povos, tão antigos quanto os gregos ou mais antigos do que eles, como os chineses, os hindus, os japoneses, os árabes, os persas, os hebreus, os africanos ou os índios da América não possuam sabedoria, pois possuíam e possuem. Também não quer dizer que todos esses povos não tivessem desenvolvido o pensamento e formas de conhecimento da natureza e dos seres humanos, pois desenvolveram e desenvolvem.
Quando se diz que a Filosofia é grega, o que se quer dizer é que ela possui certas características, apresenta certas formas de pensar e de exprimir os pensamentos, estabelece certas concepções sobre o que sejam a realidade, a razão, a linguagem, a ação, as técnicas, completamente diferentes das de outros povos e outras culturas.
Quando nos acercamos da Filosofia nascente, podemos perceber os principais traços que definem a atividade filosófica na época de seu nascimento:
·   tendência à racionalidade, pois os gregos foram os primeiros a definir o ser humano como um animal racional, a considerar que o pensamento e a linguagem definem a razão, que o homem é ser dotado de razão e que a racionalidade é seu traço distintivo em relação a todos os outros seres. Mesmo que a razão humana não possa conhecer tudo, tudo o que ela pode conhecer, conhece plena e verdadeiramente.
A tendência à racionalidade significa que a razão humana ou o pensamento é a condição de todo conhecimento verdadeiro e, por isso mesmo, a própria razão ou o próprio pensamento deve conhecer as leis, regras, princípios e normas de suas operações e de seu exercício correto;
·   tendência à argumentação e ao debate para oferecer respostas conclusivas às questões, dificuldades e problemas, de modo que nenhuma solução seja aceita se não houver sido demonstrada, isto é, provada racionalmente em conformidade com os princípios e as regras do pensamento verdadeiro;
·   capacidade de generalização, isto é, de mostrar que uma explicação tem validade para muitas coisas diferentes ou para muitos fatos diversos, porque, sob a aparência da diversidade e da variação percebidas pelos órgãos dos sentidos, o pensamento descobre semelhanças e identidades. Essa capacidade racional é a síntese (palavra grega que significa “reunião ou fusão de várias coisas numa união íntima para formar um todo”).
Por exemplo, para meus olhos, meu tato e meu olfato, o gelo é diferente da neblina, que é diferente do vapor de uma chaleira, que é diferente da chuva, que é diferente da correnteza de um rio. No entanto, o pensamento mostra que se trata sempre de um mesmo elemento (a água), que passa por diferentes estados e formas (líquido, sólido, gasoso) em decorrência de causas naturais diferentes (condensação, liquefação, evaporação).
Reunindo semelhanças, o pensamento conclui que se trata de uma mesma coisa que aparece para nossos sentidos de maneiras diferentes e como se fossem, coisas diferentes. O pensamento generaliza, isto é, encontra sob as diferenças a identidade ou a semelhança e reúne os traços semelhantes, realizando uma síntese;
·   capacidade de diferenciação, isto é, mostrar que fatos ou coisas que aparecem como iguais ou semelhantes são, na verdade, diferentes, quando examinados pelo pensamento ou pela razão. Essa capacidade racional para compreender diferenças onde parece haver identidade ou semelhança é a análise (palavra grega que significa “ação de desligar e separar, resolução de um todo em suas partes”).
No ano de 1992, no Brasil, os jovens estudantes pintaram a cara com as cores da bandeira nacional e saíram às ruas para exigir o impedimento do presidente da República.
Logo depois, os candidatos a prefeituras municipais contrataram jovens para aparecer na televisão com a cara pintada, defendendo tais candidaturas. A seguir, as Forças Armadas brasileiras, para persuadir jovens a servi-las, contrataram jovens caras-pintadas para aparecer como soldados, marinheiros e aviadores. Ao mesmo tempo, várias empresas, pretendendo vender seus produtos aos jovens, contrataram artistas jovens para, de cara pintada, fazer a propaganda de seus produtos.
Aparentemente, teríamos sempre a mesma coisa – os jovens rebeldes e conscientes, de cara pintada, símbolo da esperança do país. No entanto, o pensamento pode mostrar que, sob a aparência da semelhança percebida, estão as diferenças, pois os primeiros caras-pintadas fizeram um movimento político espontâneo; os seguintes fizeram propaganda política para um candidato (e receberam dinheiro para isso); os terceiros tentaram ajudar as Forças Armadas a aparecer como divertidas e juvenis, e os últimos, mediante remuneração, estavam transferindo para produtos industriais (roupas, calçados, vídeos, margarinas, discos, iogurtes) um símbolo político inteiramente despolitizado e sem nenhuma relação com sua origem. Separando as aparentes semelhanças, distinguindo-as, o pensamento descobriu diferenças e realizou uma análise.
Argumentar e demonstrar por meio de princípios e regras necessárias e universais, apreender pelo pensamento a unidade real sob a multiplicidade percebida ou, ao contrário, apreender pelo pensamento a multiplicidade e diversidade reais de algo percebido como uma unidade ou uma identidade, eis aí algumas das características do que os gregos chamaram de Filosofia.
Com a Filosofia, os gregos instituíram para o Ocidente europeu as bases e os princípios fundamentais do que chamamos razão, racionalidade, ciência, ética, política, técnica, arte. Aliás, basta observar que são gregas palavras como lógica, técnica, ética, política, monarquia, anarquia, democracia, física, diálogo, biologia, semântica, sintaxe, símbolo, alegoria, mito, tragédia, cronologia, gênese, genealogia, cirurgia, ortopedia, pedagogia, farmácia, psicologia, ortodoxia, análise, síntese, entre muitas outras, para perceber a influência decisiva e predominante da Filosofia grega na formulação do pensamento e das instituições das sociedades européias ocidentais.
Do legado filosófico grego, podemos destacar como principais contribuições as seguintes:
·   A idéia de que o conhecimento verdadeiro deve encontra as leis e os princípios universais e necessários do objeto conhecido e deve demonstrar sua verdade por meio de provas ou argumentos racionais. Ou seja, em primeiro lugar, a idéia de que um conhecimento não é algo que alguém impõe a outros, e sim algo que deve ser compreendido por todos, graças a argumentos, debates e provas racionais, pois a razão ou a capacidade de pensar e conhecer é a mesma em todos os seres humanos; e, em segundo lugar, a idéia de que um conhecimento só é verdadeiro quando explica racionalmente o que é a coisa conhecida, como ela é e por que ela é.
É assim, por exemplo, que a matemática deve ser considerada um conhecimento racional verdadeiro, pois define racionalmente seus objetos: ninguém impõe aos outros que o círculo é uma figura geométrica em que todos os pontos são eqüidistantes do centro, pois essa definição simplesmente ensina que, onde quer que haja uma figura desse tipo, ela será necessariamente um círculo; da mesma maneira, ninguém impõe aos outros que o triângulo é uma figura geométrica em que a soma dos ângulos internos é igual à soma de dois ângulos retos, pois essa definição simplesmente mostra que, onde houver um afigura com tal propriedade, ela será necessariamente um triângulo.
Além de definir seus objetos, a matemática não os impõe, e sim os demonstra por meio de provas (os teoremas) fundados em princípios racionais verdadeiros (os axiomas e os postulados).
·   A idéia de que a natureza segue uma ordem necessária, e não casual ou acidental. Ou seja, a idéia de que ela opera obedecendo a leis e princípios necessários – não poderiam ser outros ou diferentes do que são – e universais – são os mesmos em toda parte e em todos os tempos.
Ou, em outras palavras, uma lei natural é necessária porque nenhum ser natural, no universo inteiro, espaça dela nem pode operar de outra maneira que não desta; e uma lei da natureza é universal porque é válida para todos os seres naturais em todos os tempos e lugares.
A idéia de ordem natural necessária e universal é o fundamento da origem da Filosofia, dando nascimento à primeira expressão filosófica conhecida, a cosmologia (conhecimento racional da ordem universal, pois a palavra cosmo vem do vocabulário grego Kósmos, que significa “ordem e organização do mundo”, como já foi explicado anteriormente). Essa idéia é, pois, responsável pelo surgimento do que será chamado de “filosofia da natureza” ou “ciência da natureza”, ou o que os gregos chamaram de “física” (palavra que deriva do vocábulo grego physis, natureza).
Assim, por exemplo, a idéia de que a natureza é uma ordem que segue leis universais e necessárias levou, no século XVII, Galileu Galilei a demonstrar as leis do movimento e as leis da queda dos corpos. Ou, ainda naquele mesmo século, levou Isaac Newton a estabelecer um alei física válida para todos os corpos naturais ou a lei da gravitação universal. E, no século XX, levou Albert Einstein a estabelecer um alei válida para toda a matéria e energia do universo, lei que se exprime na fórmula E=mc² (em que E é a energia, m é a massa e c é velocidade da luz), segundo a qual a energia é a transformação quer acontece à massa de um corpo quando sua velocidade é o quadrado da velocidade da luz.
·   A idéia de que as leis necessárias e universais da natureza podem ser plenamente conhecidas pelo nosso pensamento, isto é, não são conhecimentos misteriosos e secretos, que precisariam ser revelados por divindades, mas sim conhecimentos que o pensamento humano, por sua própria força e capacidade, pode alcançar.
·   A idéia de que e a razão também opera obedecendo a princípios, leis, regras e normas universais e necessários, como os quais podemos distinguir o verdadeiro do falso. Em outras palavras, a idéia de que, por sermos racionais, nosso pensamento é coerente e capaz de conhecer a realidade porque segue leis lógicas de funcionamento.
Nosso pensamento diferencia uma afirmação de uma negação porque, na afirmação, atribuímos alguma coisa a outra coisa (quando afirmamos que “Sócrates é um ser humano”, atribuímos humanidade a Sócrates) e, na negação, retiramos alguma coisa de outra (quando dizemos “Este caderno não é verde”, estamos retirando do caderno a cor verde). Por isso mesmo, nosso pensamento percebe o que é a identidade, isto é, que devemos sempre e necessariamente afirmar que uma coisa é idêntica a si mesma (“Sócrates é Sócrates”), pois, se negarmos sua identidade, estaremos retirando dela ela própria. Graças à afirmação da identidade, o pensamento pode distinguir e diferenciar os seres (“Sócrates é diferente de Platão e ambos são diferentes de uma pedra”).
Nosso pensamento também percebe o que é uma contradição, ou seja, que é impossível afirmar e negar ao mesmo tempo a mesma coisa de uma outra coisa (“O infinito é ilimitado e não é ilimitado”), e, por isso, também percebe a diferença entre uma contradição e uma alternativa, pois, nesta, ou a afirmação será verdadeira e real e a negação será falsa, ou vice-versa (“Ou haverá guerra ou não haverá guerra”).
Que importância pode ter a descoberta de que a razão ou o pensamento obedece à lei da identidade, da diferença, da contradição e da alternativa? Basta que nos lembremos como nos contos de fadas, nos mitos religiosos e nas lendas populares as narrativas são maravilhosas justamente porque nelas não funcionam essas distinções para que compreendamos que, ao afirmá-las como leis do pensamento racional, os filósofos gregos estabeleceram a diferença ente ilusão e verdade.
Nosso pensamento distingue quando uma afirmação é verdadeira ou falsa porque distingue o não-contraditório do contraditório e porque reconhece o verdadeiro como lago que se conclui de uma demonstração, de uma prova ou de um argumento racional.
Se alguém apresentar o seguinte raciocínio: “Todos os homens são mortais. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal”, diremos que a afirmação “Sócrates é mortal” é verdadeira porque foi concluída de outras afirmações cujas demonstrações também já foram realizadas e sabemos serem verdadeiras (“Todos os seres que nascem e percebem existem no tempo. Todos os seres que existem no tempo são mortais”; “Todos os homens existem no tempo. Todos os homens são mortais”).
·   A idéia de que as práticas humanas dependem da vontade livre, da deliberação e da discussão, de uma escolha emocional ou racional, de nossas preferências e opiniões, que se realizam segundo certos valores e padrões, que foram estabelecidos pela natureza ou pelos próprios seres humanos, e não por imposições misteriosas e incompreensíveis. Em outras palavras, o agir humano exprime a conduta de um ser racional dotado de vontade e de liberdade.
·   A idéia de que os acontecimentos naturais e humanos são necessários porque obedecem a leis (da natureza humana) não exclui a compreensão de que esses acontecimentos, em certas circunstâncias e sob certas condições, também podem se acidentais, seja porque um concurso de circunstâncias os faz ocorrer por acaso da natureza, seja porque as ações humanas dependem das escolhas e deliberações dos homens, em condições determinadas.
Uma pedra lançada ao ar cai necessariamente porque pela lei natural da gravitação ela necessariamente deve cair e não pode deixar de cair; um ser humano é capaz de locomoção e anda porque as leis anatômicas e fisiológicas que regem o seu corpo fazem com que ele tenha os meios necessários para isso. No entanto, se uma pedra, ao cair, atingir a cabeça de um passante, esse acontecimento é acidental. Por quê? Porque se o passante não estivesse andando por ali naquela hora a pedra não o atingiria. Assim, a queda da pedra é necessária e o andar de um ser humano é necessário, mas, se uma pedra cai sobre minha cabeça quando ando, isto é inteiramente acidental. É o acaso.
No entanto, o próprio acaso não é desprovido de uma lei natural. Como explica o filósofo Aristóteles, o acaso é o encontro acidental de duas séries de acontecimentos que são, cada uma delas, necessárias (é por necessidade natural que a pedra cai e por necessidade natural que o homem anda). A lei natural do acaso é, portanto, o encontro acidental de coisas que em si mesmas são necessárias.
Todavia, a situação das ações humanas é bastante diversa dessa. É verdade que é por uma necessidade natural ou por uma lei da natureza que ando. Mas é por deliberação voluntária que ando para ir à escola em vez de andar par ir ao cinema, por exemplo.
É verdade que é por uma lei necessária da natureza que os corpos pesados caem, mas é por uma deliberação humana e por uma escolha voluntária que fabrico uma bomba, a coloco num avião e a faço despencar sobre Hiroshima. Essa escolha faz com que a ação humana introduza o possível no mundo, pois o possível é o que pode acontecer ou deixar de acontecer, dependendo de uma escolha voluntária e livre.
Um dos legados mais importantes da Filosofia grega é, portanto, a diferença entre o necessário (o que não pode ser senão como é) e o contingente (o que pode ser ou não ser), bem como a diferença, no interior do contingente, entre o caso e o possível. O contingente é o que pode ou não acontecer na natureza ou ente os homens; o acaso é a contingência nos acontecimentos da natureza; o possível é a contingência nos acontecimentos humanos.
Dessa maneira, os filósofos gregos nos deixaram a idéia de que podemos diferenciar entre o necessário, o acaso e o possível em nossas ações: o necessário é o que não está em nosso poder escolher, pois acontece e acontecerá sempre, independentemente de nossa vontade (não depende de nós que o sol brilhe, que haja dia e noite); o acaso é o que também não está em nosso poder escolher (não escolho que aconteça uma tempestade justamente quando estou fazendo uma viagem de navio ou de avião, nem escolho estar num veículo que será atingido por outro, dirigido por um motorista embriagado); o possível,ao contrário do necessário e do acaso, é exatamente o que temos poder de escolher e fazer, é o que está em nosso poder.
Essas diferenciações legadas pela filosofia grega nos permitem evitar tanto o fatalismo – “tudo é necessário, temos de nos conformar com o destino e nos resignar com nosso fado” – como a ilusão de que podemos tudo quanto quisermos, pois a natureza segue leis necessárias que podemos conhecer e nem tudo é possível por mais que o queiramos.
·   A idéia de que os seres humanos naturalmente aspiram ao conhecimento verdadeiro (porque são seres racionais), à justiça (porque são seres dotados de vontade livre) e à felicidade (porque são seres dotados de emoções e desejos), isto é, que os seres humanos não vivem nem agem cegamente, nem são comandados por forças extranaturais secretas e misteriosas, mas instituem por si mesmos valores pelos quais dão sentido às suas ações.

4. Características do Pensamento filosófico
A filosofia é um modo de pensar, é uma postura diante do mundo. A filosofia não é um conjunto de conhecimentos prontos, um sistema acabado, fechado em si mesmo. Ela é, antes de mais nada, um modo de se colocar diante da realidade, procurando refletir sobre os acontecimentos a partir de certas posições teóricas. Essa reflexão permite ir além da pura aparência dos fenômenos, em busca de suas raízes e de sua contextualização em um horizonte amplo, que abrange os valores sociais, históricos, econômicos, políticos, éticos e estéticos. Por essa razão, ela pode se voltar para qualquer objeto. Pode pensar a ciência, seus valores, seus métodos, seus mitos; pode pensar a religião; pode pensar a arte; pode pensar o próprio homem em sua vida cotidiana.[...] a filosofia é um jogo irreverente que parte do que existe, critica, coloca em dúvida, faz perguntas importunas, abre a porta das possibilidades, faz-nos entrever outros mundos e outros modos de compreender a vida.
A filosofia incomoda porque questiona o modo de ser das pessoas, das culturas, do mundo. Questiona as práticas políticas, cientifica, técnica, ética, econômica, cultural e artística. Não há área em que ela não se meta, não indague, não perturbe. E, nesse sentido, a filosofia é perigosa, subversiva, pois vira a ordem estabelecida de cabeça para baixo.
Podemos, agora perceber a razão da condenação de Sócrates na Antiguidade ou da proibição da leitura de Karl Marx no Brasil pós-64. Ambos foram (e são ainda) subversivos, perigosos, pois, ao indagar sobre a realidade de sua época, fizeram surgir novas possibilidades de comportamento e de relação social. Do ponto de vista do poder estabelecido, mereceram a morte e/ou o banimento de suas obras.[1]

4.1. As suas características: totalidade, radicalidade e criticidade.
Segundo o professor Demerval Saviani, a reflexão filosófica é radical, rigorosa e de conjunto. Interpretemos esses tópicos:
·                     Radical: a palavra latina radix, radicis significa “raiz”, e no sentido figurado, “fundamento, base” portanto, a filosofia é radical não no sentido corriqueiro de ser inflexível (nesse sentido seria antifilosofia!), mas enquanto busca explicar os conceitos fundamentais usados em todos os campos do pensar e do agir. Por exemplo, a filosofia das ciências examina os pressupostos do saber científico, do mesmo modo que, diante da decisão de um vereador em aprovar determinado projeto, a filosofia política investiga as “raízes” (os princípios políticos) que orientam sua ação.
·                     Rigorosa: enquanto a “filosofia de vida” não leva as condições até as últimas conseqüências, e nem sempre é capaz de examinar os fundamentos delas, o filósofo deve dispor de um método claramente explicitado a fim de proceder com rigor, garantindo a coerência e o exercício da crítica. Mesmo porque o filósofo não faz afirmações apenas, precisa justifica-las com argumentos. para tanto usa de linguagem rigorosa, que evita as ambigüidades das expressões cotidianas e lhe permite discutir com outros filósofos a partir de conceitos claramente definidos. É por isso que o filósofo sempre ‘inventa conceitos”, ou cria expressões novas ( quando fizeram isto os gregos!) ou altera e especifica o sentido de palavras usuais.
·                     De conjunto: enquanto as ciências são particulares, porque abordam “ recortes” da realidade e se distinguem de outras formas de conhecimento, e a ação humana se expressa nas mais variadas formas( técnica, magia, arte, política etc.), a filosofia é globalizante, porque examina os problemas sob a perspectiva de conjunto, relacionando os diversos aspectos entre si. Nesse sentido, além de considerarmos que o objeto da filosofia é tudo (porque nada escapa a seu interesse), completamos que a filosofia visão ao todo, à totalidade. Daí a função de interdisciplinaridade da filosofia, estabelecendo o elo entre as diversas formas de saber e agir humanos. [2]

5. Os Pré-Socráticos e a cosmologia
Os primeiros filósofos e suas teorias
Tales, Anaximandro e Anaxímenes – que receberam o nome de pré-socráticos por ter surgido antes de Sócrates, o grande marco da filosofia ocidental-, os primeiros filósofos, formam a chamada escola de Mileto. Apesar das diferentes idéias que elaboraram, une-os o fato de ter inaugurado a filosofia com a mesma pergunta; o que é a physis? Por esse motivo, Aristóteles, mais tarde, iria denominá-los physiologoi, “fisiólogos”, isto é, estudiosos da physis.

1. Tales: tudo começa na água; Tales, nascido em Mileto, é considerado, pela tradição clássica, o primeiro filósofo. Viveu provavelmente entre 640-562 a. C. Matemático e astrônomo, previu o eclipse do sol de 585 a.C. diz-se que, distraído, teria caído num poço quando contemplava os astros. Mas comenta-se, também que foi hábil negociante, e que prosperou muito por causa da astúcia.
De seu pensamento só ficaram interpretações formuladas por outros filósofos, que lhe atribuíram uma idéia básica: a de que tudo se origina da água. A physis, então, teria como único princípio esse elemento natural,presente em tudo. Segundo Tales, a água, ao se resfriar, torna-se densa e dá origem a terra; ao se aquecer transforma-se em vapor e ar, que retornam como chuva quando novamente esfriados. Desse ciclo (vapor, chuva, rio, mar, terra) nascem as diversas formas de vida, vegetal e animal.
Não há dúvida de que esse pensamento logo esbarra em dificuldades. O que são, por exemplo, o calor e o frio de que depende o movimento da água, se é esta a origem única de todas as coisas? a busca da arkhé, um princípio único, conflita com as outras forças que, por sua vez, precisam ser enquadradas em um principio diferente. Essa dificuldade não é exclusiva de Tales: é da própria filosofia, que se desenvolve tentando resolve-la...

2. Anaximandro: indeterminado e eterno: Contemporâneo de tales, Anaximandro procura um caminho diferente. Para ele, o princípio da physis é o ápeíron, que pode ser traduzido como indeterminado ou ilimitado. Eterno, o ápeiron está em constante movimento, e disso resulta uma série de pares opostos – água e fogo, frio e calor – que constituem o mundo. O apeíron é, desse modo, algo abstrato, que não se fixa diretamente em nenhum elemento palpável da natureza. Com essa concepção, Anaximandro prossegue na mesma linha da tales, porém dando um passo a mais na direção da independência do “princípio” em relação às coisas particulares.

3. Anaxímenes: o ar comanda a vida: O meio-termo entre tales e Anaximandro é representado por Anaxímenes, que viveu em meados do século VI a.C. segundo ele, a arkhé que comanda o mundo é o ar, um elemento não tão abstrato como o apeíron, nem papável demais como a água. Tudo provém do ar, através de seus movimentos: o ar é respiração e é vida; o fogo é o ar rarefeito; a água, a terra , a pedra são formas cada vez mais condensadas de ar. Tudo o que existe, mesmo apresentando qualidades diferentes, reduz-se a variações quantitativas (mais raro, mais denso) desse único elemento...

4. Pitágoras: tudo é matemática: Pitágoras, se é que realmente existiu, teria nascido na Jônia, na segunda metade do século VI a.C. instalando-se em Crotona, fundou uma seita religiosa e mística, que tinha como base o orfismo – um culto popular que pregava a transmigração da alma e a necessidade da purificação do homem para salva-lo do ciclo das sucessivas reencarnações. Assim como o orfismo, a seita pitagórica tinha um caráter esotérico, secreto; suas idéias só eram acessíveis aos iniciados, que deviam praticar uma série de obrigações.
O pitagorismo representaria um marco decisivo no desenvolvimento do pensamento racional e científico, por ter elevado à condição divina uma das realizações mais racionais do homem: a matemática. Com os pitagóricos a matemática deixou de ser uma técnica capaz de atender necessidades práticas como as de agrimensura para tornar-se uma ciência pura.
Para os pitagóricos o homem precisa identificar-se com o divino para eliminar conflitos e se salvar. Chega-se a isso pela contemplação teórica, que vislumbra, por trás dos conflitos, a harmonia. A harmonia está presente, por exemplo, na música, um dos elementos-chave da prática ritual do orfismo[...]. Os pitagóricos vão estender para todas as coisas esse entendimento da música. O mundo é número, afirmam, e reduzem tudo o que existe a figuras geométricas simples.
Se o mundo é número, cabe então descobrir as “características” de cada um, e suas relações. Dentre os vários “tipos” de números destacam-se dois: os pares (2,4,6..) e os ímpares (1,3,5..). dispostos geometricamente, os pares formam um retângulo e representam a alteridade, a diferença, enquanto os ímpares, que formam sempre um quadrado, com lados iguais, constituem a identidade. Dito de outra maneira, os ímpares são o princípio do Mesmo, e os pares do Outro.

5. Heráclito: “tudo é um”: Heráclito (c. 540-480 a.C.) transforma em solução o que aos outros era problema. Para ele, o mundo explica-se não apesar das mudanças de seus aspectos, muitas vezes contraditórios, mas exatamente por causa dessas mudanças e contradições. Por isso, em um de seus fragmentos, diz: “o combate é de todas as coisas pai, de todas rei”. Em outras palavras, todas as coisas opõem-se umas às outras, e dessa tensão resulta a unidade do mundo.
Essa oposição, esse combate, é uma guerra, e não, como pretendia Anaximandro, o equilíbrio de forças iguais. Tampouco é a harmonia dos contrários assegurada, como no entender dos pitagóricos, pela justa medida imposta por um ente supremo. Para Heráclito, a harmonia nasce da própria oposição: “o divergente consigo mesmo concorda; harmonia de tensões contrárias, como de arco e lira”.
A divergência e a contradição não só produzem a unidade do mundo, mas também a sua transformação. O mundo é um eterno fluir, como um rio; e é impossível banhar-se duas vezes na mesma água. Fluxo contínuo de mudanças, o mundo é como um fogo eterno, sempre vivo, e “nenhum deus, nenhum homem o fez”.
Mas só se compreende isso quando, ao deixar de lado a “falsa sabedoria” ditada pelos sentidos e pelas opiniões, chega-se ao logos, isto é, ao pensamento sensato. É o raciocínio adequado que abre as portas para o entendimento do princípio de todas as coisas. “Não de mim, mas do logos tendo ouvido é sábio homologar tudo é um”, diz um dos aforismos de Heráclito.

6. Parmênides: o ser e as ilusões: Parmênides (c.540-450 a.C.), ao contrário de Heráclito, procura eliminar tudo que seja variável e contraditório. Se uma coisa existe, ela é esta coisa e não pode ser outra, muito menos o seu contrário. Uma árvore é uma árvore, o Sol é o Sol, o homem é o homem, o que é o que é. Em outras palavras, o ser é o ser ou, resumidamente, o ser é. Segue-se logicamente que o não-ser não é,não pode existir.
Se só o ser existe, o ser deve sempre existir. Deve ser único, imóvel, imutável, sem variações, eterno. Mas o que seriam então as constantes mudanças, as contradições e os aspectos diferentes que o mundo apresenta? São ilusões, responde Parmênides, meras aparências produzidas por opiniões enganadoras, não pelo conhecimento do verdadeiro ser.
Esse pensamento inaugura a metafísica (por não se contentar com a aparência das coisas e buscar algo que estaria “por trás” dessa aparência física, ou seja, a essência) e a lógica (o princípio da não-contradição existente no ser, que é, e no não-ser, que não é). Para Parmênides, o mundo dos sentidos, por estar condicionado às variações dos fenômenos observados e das sensações, dá origem a incertezas e a opiniões diversas. Por isso, o conhecimento não pode ser alcançado por esse caminho, e sim pela certeza que a razão produz por meios lógicos e dedutivos.

7. Os paradoxos de Zenão: O pensamento de Parmênides é levado ao extremo por seu discípulo Zenão (também de Eléia), que formula seus famosos paradoxos. “paradoxo”, na origem, significa “contrário à opinião”, e é exatamente contra a opinião comum que Zenão pretende demonstrar que a variedade (ou a pluralidade) das coisas e o movimento são impossíveis.
Se há coisas, afirma Zenão, elas devem ser em determinado número, nem mais nem menos; mas entre elas deve haver sempre outras. Então é preciso admitir que existe um número ao mesmo tempo finito e infinito de coisas, o que é absurdo. Esse argumento supõe que não haja o vazio. De fato, segundo Zenão, se existe algo, esse algo está em algum lugar, mas esse lugar deve também estar num lugar e assim sucessivamente. Um lugar sempre contém outro, por isso não pode estar vazio; o vazio não existe.
Tampouco existe o movimento. Uma flecha, para atingir o alvo, ocupa a cada momento da trajetória um espaço igual a si mesma. Ou seja: a cada momento ela está parada. O movimento da fecha seria a soma de movimentos em que está imóvel, o que é absurdo. O movimento é assim uma ilusão, do mesmo modo que a pluralidade das coisas o é. Só há um ser, único, imóvel, indivisível e eterno.

8. As quatro raízes de Empédocles: Nascido em Agrigento, na Magna Grécia, Empédocles (C. 483-430 a.C), médico e místico, defensor da democracia, faz essa conciliação ao preservar a idéia de que o ser é terno e indivisível, mas não a de que é único e imóvel. Para ele, o mundo compõe-se de quatro princípios ou raízes: água, ar, fogo e terra. Tudo resulta da combinação, em proporções maiores ou menores, dessas quatro raízes, todas elas mutáveis e indestrutíveis. Mas, para que se combinem, é preciso algo que as faça mover-se, aproximando-as ou separando-as. Por isso, Empédocles é levado a conceber forças opostas: o Amor e o Ódio, o primeiro agindo no sentido de aproximar e mistura as raízes, e o segundo no sentido contrário.
Tanto nas quatro raízes como nas duas forças não há hierarquia. Uma não é mais importante do que a outra, nem há entre elas a idéia de anterioridade; todas encontram-se no mesmo plano. Num momento, o Amor une as raízes, formando um todo único. No momento seguinte, o Ódio as separa, produzindo as diversas coisas existentes no mundo. Quando essa separação se completa, o Amor volta a agir. Esse movimento cíclico origina e refaz tudo o que há.

9. Anáxogoras: um pouco de tudo em tudo: Em vez de quatro raízes, um sem-número de elementos com qualidades distintas – essa é a concepção de Anaxágoras, que, nascido na Jônia, foi o primeiro filósofo a viver em Atenas, onde se instalou em 487 a.C. para ele, tudo o que existe é composto de todos esses elementos, uns em maior quantidade, outros em proporções tão ínfimas que nem sequer são perceptíveis. “Em tudo é incluída parte de tudo”, disse ele. A pluralidade das coisas explica-se assim por infinitas combinações de todos os elementos.
E o movimento? Segundo Anaxágoras, todas as coisas estavam juntas na origem, formando um todo cujas partes não eram identificáveis, com o caos original da mitologia. Elas, porém, foram-se separando pela força do nuos (espírito ou inteligência), que, como num turbilhão, pôs em movimento todas as coisas, misturando-as em diversas proporções. O nuos é assim a origem do movimento e da pluralidade. Ele, porém é autônomo, isto é, não se mistura com as coisas, mas as dirige.

10. Leucipo e Demócrito: o átomo como princípio: Outra é a concepção de Leucipo , nascido talvez em Mileto, em data desconhecida do século V a.C., e de seu discípulo Demócrito (470-370 a.C.), de Abdera. Para eles, o mundo é composto de átomos – palavra grega que significa “ não divisível’. Assim, o átomo é indivisível, mas também imutável, eterno, sempre idêntico a si mesmo. E, nesse sentido, equivale ao Ser de Parmênides. Mas não é único. Os átomos existem me número infinito. A conseqüência disso é que entre um átomo e outro existe um algo; um vazio, um nada, um não-ser, repudiado por Parmênides e Zenão. É nesse vazio que os átomos se movem. Em seu entrechoque produzem diversas combinações, e daí resulta a pluralidade das coisas: o mundo em movimento.
O nascimento, assim, não passa de um agregado de átomos, enquanto a morte é apenas a destruição desse agrupamento. Nos dois casos, cada átomo permanece intacto e imutável. Eles se diferenciam, porém, numa série de aspectos, como tamanho, forma, posição. Há átomos grandes e pequenos, redondos e angulosos, em pé ou de lado. Suas combinações também variam: os átomos A e N, por exemplo, podem se reunir com NA ou NA. (ABRÃO, Bernadette. História da Filosofia, p.24-36)


***

6. Sofística: contextualização do pensamento dos sofistas

Prof.: Epitácio Rodrigues
In: http://filosofiaprofrodrigues.blogspot.com.

A filosofia, como sabemos, inicia-se com a preocupação acerca da physis, o princípio originário da natureza e, depois de um período de investigação, discordância e esfriamento, surge uma nova etapa na história do pensamento filosófico ocidental. Não se trata de um salto sem nenhuma relação com a produção filosófica anterior, pois os protagonistas dessa nova fase estão teoricamente ligados aos seus antecessores. Porém, a falta de consenso e as disparidades entre as teorias dos pré-socráticos suscitam uma desconfiança sobre a existência de uma verdade absoluta e eterna (como queria Parmênides). Por isso, alguns filósofos se esforçam para compreender a realidade e o próprio conhecimento de uma forma mais dinâmica, marcada pelo conflito dialético e provisório.
Além disso, as novas exigências do contexto sócio-político e cultural obrigaram um redimensionamento da investigação e discussão filosófica, no qual o foco de interesse e atenção dos filósofos volta-se para o homem e sua relação com a sociedade. Pode-se mesmo dizer que a ética, a política e, de certo modo, a questão da verdade, da linguagem estão entre as grandes questões.
As mudanças no cenário político da Grécia, sobretudo em Atenas, com a saída do regime da tirania e da oligarquia e entrada numa fase de democracia direta, as decisões importantes passam a ser tomadas em assembléias, nas quais se sobressaia quem fosse melhor nos confrontos de opiniões e na capacidade de argumentação. Os cidadãos de Atenas sentem a necessidade de aprender a arte de argumentar e de persuadir seus ouvintes e assim garantir que seus interesses pessoais e de sua classe prevaleçam sobre os demais.
Diante dessa demanda, surge uma nova classe de professores sábios itinerantes, especialistas na arte da retórica e na gramática, conhecidos como sofistas. O nome é muito sugestivo e mostra como eram vistos por todos. Na língua grega a palavra para designar sábio é sophos, da qual deriva o termo sofista. Portanto, esses professores tidos como sábios e conhecedores de uma gama variada de assuntos, se propunham ensinar as técnicas do discurso para influenciar e persuadir seus adversários no debate político. Assim, jogos de palavras, técnicas de raciocínios e certo relativismo filosófico eram estimulados nos procedimentos didáticos dos sofistas.

Os sofistas ensinavam técnicas de persuasão para os jovens, que aprendiam a defender a posição ou opinião A, depois a posição ou opinião contrária, não-A, de modo que, numa assembléia, soubessem ter fortes argumentos a favor ou contra uma opinião e ganhassem a discussão. (CHAUI, 2001: 37)

No que se refere à posição filosófica da sofistica, pode-se dizer que, apesar das diferenças entre eles, o relativismo é um elemento comum em todos os filósofos desse movimento. Eles defendiam não a existência de uma verdade única e absoluta, “tudo é relativo ao individuo, ao momento, a um conjunto de fatores e circunstâncias” (COTRIM, 2002: p. 91).
Por causa desse relativismo filosófico e da cobrança por seus ensinamentos, os sofistas foram duramente criticados por seus contemporâneos, os filósofos atenienses, Sócrates e Platão. Pesava sobre eles a acusação de mercenários, professores que estavam preocupados apenas em ganhar dinheiro, sem um compromisso com a verdade. Em poucas palavras, seus ensinamentos nada mais eram que uma produção intencional da falsidade e o uso da retórica como instrumento de manipulação.
Essas críticas influenciaram a visão que a posteridade filosófica teria dos sofistas até a modernidade, quando filósofos e especialistas em cultura grega descortinaram o caráter tendencioso das colocações de Platão a cerca da sofística.
Os principais sofistas foram: Licrofon, Pródicos, que teria sido mestre de Sócrates, Trasímaco, Hípias, Protágoras e Górgias. Como as informações sobre esses pensadores são muito fragmentadas, vamos apresentar sumariamente apenas os três últimos, que são considerados os mais notáveis dentre eles:
Hípias de Elis (séc. V a.C.) As informações sobre Hípias são escassas. Sabemos apenas que ele era um filósofo da primeira geração de sofistas, sendo citado nos diálogos Platônico Hipias e Protágoras. Era detentor de um saber enciclopédico e profundo conhecedor de todas as artes. A seu respeito dirá o filósofo Jacques Maritain:

Hípias, que brilhava igualmente na Astronomia, Geometria, Aritmética, Fonética, Rítmica, Música, Pintura, Etnologia, Mnemotécnica, epopéia, Tragédia, epigrama, Ditirambo e nas exortações morais, que foi embaixador de Elis e aprendeu todos os ofícios (tendo comparecido uma vez aos jogos olímpicos com uma roupa feita por suas próprias mãos), lembra um herói da renascença italiana (1963, p. 45).

Platão atribui a Hípias a distinção entre o que é bom por natureza, sendo eternamente válido, e o que é conforme a lei, sendo contingente e, por conseguinte, coagindo a natureza humana. (cf. JAPIASSÚ, 2006: p.131.)
Protágoras de Abdera (c. 490-421 a.C.) O filósofo Protágoras nasceu em Abdera, na Trácia, mas ainda muito jovem transferiu-se para Atenas. Nesta cidade tornou–se professor de uma multidão de alunos. É célebre a afirmação de Protágoras: “o homem é a medida de todas as coisas, das que são como são e das que não são como são”. Sintetizando assim o seu humanismo e seu relativismo filosófico, na medida em que coloca o homem no centro do conhecimento e condiciona a verdade do conhecimento à opinião da maioria, podendo variar de acordo com os lugares, as épocas e os interesses.
Górgias de Leontinos (c. 485-+380 a.C.): retórico e filósofo, nascido em Leontinos, região da Sicília, na Itália, por volta de 485, teria chefiado uma delegação a Atenas, em 427, para conseguir a interferência ateniense contra Siracusa, que ameaçava a independência das cidades vizinhas; obteve grande sucesso graças aos seus conhecimentos de oratória. Volta a Atenas, onde se torna um professor de oratória muito conhecido e respeitado.
No campo da filosofia, Górgias leva o relativismo de Protágoras ao ceticismo radical, como se pode observar no trecho da sua obra intitulada Sobre a natureza, ou seja, sobre o que não é. Ali o filósofo defende claramente: “Nada existe; se existisse alguma coisa, não poderíamos conhecê-la, se pudéssemos conhecê-la, não poderíamos comunicar nosso conhecimento aos outros”. (apud: MONDIN, 1981, p.42).
Qual a importância dos sofistas? Pode-se dizer que o movimento sofista deu uma grande contribuição para os estudos de etimologia, gramática e retórica. Além disso, suas reflexões já trazem germinalmente algumas das grandes questões da Teoria do Conhecimento e da Filosofia da Linguagem, ramos da filosofia que ocuparam lugar de destaque no período moderno e contemporâneo.

BIBLIOGRAFIA:
JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 4ª ed. atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, ed. 2006.
DUZOZOI, Gerard. e ROUSSEL, André. Dicionário de Filosofia. Campinas, São Paulo: Papirus, 1993.
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia: história e grandes temas. 15 ed. reform. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002.
CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 12ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2001.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 12ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
MARITAIN, Jacques. Elementos de Filosofia I: Introdução Geral à Filosofia. 6ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1963.
MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. Vol. I: os filósofos do ocidente. 7ª ed. São Paulo: Paulus, 1981 (col. Filosofia) pp. 42-43.


II BIMESTRE

II. O PENSAMENTO DE SÓCRATES
3. Sócrates e seu método
Sócrates (c. 470-399 a.C) nada deixou escrito, e teve suas idéias divulgadas por dois de seus principais discípulos, Xenofonte e Platão. Evidentemente, devido ao brilho deles, é de se supor que nem sempre fossem realmente fiéis ao pensamento do mestre. Nos diálogos que Platão escreveu, Sócrates figura sempre como o principal interlocutor.
Mesmo tendo sido incluído muitas vezes entre os sofistas, Sócrates recusava tal classificação, e opunha-se a eles de forma crítica[...]. Sócrates se indispôs com os poderosos do seu tempo, sendo acusado de não crer nos deuses da cidade e corromper a mocidade. Por isso foi condenado e morto.
Costumava conversar com todos, fossem velhos ou moços, nobres ou escravos, preocupado com o método do conhecimento. Sócrates parte do pressuposto “só sei que nada sei”, que consiste justamente na sabedoria de reconhecer a própria ignorância, ponto de partida para a procura do saber.
Por isso seu método começa pela parte considerada “destrutiva”, chamada ironia (em grego, “perguntar”). Nas discussões afirma inicialmente nada saber, diante do oponente que se diz conhecedor de determinado assunto. Com hábeis perguntas, desmonta as certezas até o outro reconhecer a ignorância. Parte então para a segunda etapa do método, a maiêutica (em grego, ”parto”). Dá esse nome em homenagem a sua mãe, que era parteira, acrescentando que, se ela fazia parto de corpos, ele “dava à luz’ idéias novas.
Sócrates, por meio de perguntas, destrói o saber constituído para reconstruí-lo na procura da definição do conceito. Esse processo aparece bem ilustrado nos diálogos relatados por Platão, e é bom lembrar que, no final, nem sempre Sócrates tem a resposta: ele também se põe em busca do conceito e às vezes as discussões não chegam a conclusões definitivas.
As questões que Sócrates privilegia são as referentes à moral, daí perguntar em que consiste a coragem, a covardia, a piedade, a justiça e assim por diante. Diante de diversas manifestações de coragem, quer saber o que é a “coragem em si”, o universal que a representa. Ora, enquanto a filosofia ainda é nascente, precisa inventar palavras novas, ou usar as antigas dando-lhes sentido diferente. Por isso Sócrates utiliza o termo logos, que na linguagem comum significava “palavra”, “conversa”, e que no sentido filosófico passa a significar “a razão que se dá de algo”, ou mais propriamente, conceito.[...] quando Sócrates pede o logos  da justiça, que é a justiça, o que pede é o conceito da justiça, a definição da justiça.[3]


3. Sócrates e os sofistas
Sócrates foi contemporâneo dos sofistas e o mais enérgico adversário que eles tiveram. Seu método de ensino e sua doutrina são o oposto da doutrina e método dos sofistas. As divergências principais são as seguintes:
a) Os sofistas buscam o sucesso e ensinam como consegui-lo. Sócrates busca só a verdade e incita seus discípulos a descobri-la.
b) Segundo os sofistas, para ter sucesso é necessário fazer carreira. Segundo Sócrates, para se chegar à verdade, é necessário desapegar-se das riquezas, das honras, dos prazeres, e entrar no próprio espírito, analisar sinceramente a própria alma, conhecer a si mesmo, reconhecer a própria ignorância.
c) Os sofistas se gabam de saberem tudo e de ensinarem a todos. Sócrates tem a convicção de que ninguém pode ser mestre dos outros. Ele não é mestre, mas obstreta (maieuta); não ensina a verdade, mas ajuda seus discípulos a descobri-la neles mesmos. Não leciona aos discípulos,mas conversa, discute, guia-os em suas discussões, orienta-os para a descoberta da verdade.
d) segundo os sofistas, aprender é coisa facílima. Afirmam por isso que por um preço módico podem garantir aos discípulos o conhecimento da retórica e da arte de governar. Segundo Sócrates, aprender não é coisa fácil. Muitos diálogos terminam sem conclusão, sem uma definição da verdade, da bondade, da beleza, da justiça, etc., sem um desenvolvimento completo do tema proposto. Para Sócrates, é somente lenta e progressivamente que se chega ao conhecimento da verdade, esclarecendo as próprias idéias e definindo as questões sempre com mais precisão.
e) Para os sofistas, o valor de qualquer conhecimento e de qualquer lei moral é relativo, subjetivo. Para Sócrates, existem conhecimentos e leis morais de valor absoluto, objetivo e, portanto, universal. (MONDM, Batista. Curso de Filosofia. 7ª ed. São Paulo, Paulus, 1981, pp. 48-49)

Texto I.
O método de Sócrates

MÉNON: Você pode me dizer, Sócrates, se a virtude é algo que pode ser ensinado ou que só adquirimos pela prática? Ou não é nem o ensinamento nem a prática que tornam o homem virtuoso, mas algum tipo de aptidão natural ou algo assim?

SÓCRATES: [...] Você deve considerar-me especialmente privilegiado para saber se a virtude pode ser ensinada ou como pode ser adquirida. O fato é que estou longe de saber se ela pode ser ensinada, pois sequer tenho idéia do seja virtude [...] E como poderia saber se uma coisa tem uma determinada propriedade se sequer sei o que ela é.

SÓCRATES: Diga-me você próprio o que é a virtude.

MÉNON: Mas não há nenhuma dificuldade nisso. Em primeiro lugar, se é sobre a virtude masculina que você deseja saber, então é fácil ver que a virtude de um homem consiste em ser capaz de conduzir bem seus afazeres de cidadão, de tal forma que poderá ajudar seus amigos e causar dano a seus inimigos, ao mesmo tempo tomando cuidado para não prejudicar a si próprio. Ou se você quer saber sobre a virtude da mulher, esta também pode ser facilmente descrita. Ela deve ser uma boa dona-de-casa, cuidadosa com seus pertences e obediente a seu marido. Há ainda uma virtude para as crianças do sexo masculino ou feminino, uma outra para os velhos, homens livres ou escravos, como você quiser. E há muitos outros tipos de virtude, de tal forma que ninguém terá dificuldade de dizer o que é. Para cada ato e para cada momento, em relação a cada função separada, há uma virtude para cada um de nós, e de modo semelhante, eu diria, um vício.

SÓCRATES: Acho que tenho sorte. Queria uma virtude e você tem todo um enxame de virtudes para me oferecer! Mas falando sério, vamos levar adiante esta metáfora do enxame. Suponha que eu lhe perguntasse o que é uma abelha, qual é a sua natureza essencial, e você me respondesse que há muitos tipos de abelhas, o que você diria se eu lhe perguntasse então: mas é por ser abelhas que elas são muitas e de diferentes tipos, distintas umas das outras? Ou você concordaria que não é quanto a isso que diferem, mas quanto a outras coisas, outra qualidade como tamanho ou beleza?

MÉNON: Eu diria que enquanto abelhas elas não são diferentes umas das outras.

SÓCRATES: Suponha então que eu lhe peça: é exatamente isso que quero que você me diga. Qual a característica em relação à qual elas não diferem, mas são todas iguais? Você tem algo a me dizer, não?

MÉNON: Sim.

SÓCRATES: Então faça o mesmo com as virtudes. Mesmo que sejam muitas e de vários tipos, terão pelo menos algo em comum que faz de todas elas virtudes. É isso que deve ser levado em conta por quem quiser responder à questão: “o que é a virtude?”
(Texto extraído e adaptado de MONDIN, Battista. pp50-51 e MARCONDES, Danilo. pp. 46-47)

II. O PENSAMENTO DE PLATÃO
Texto I. Platão
Platão (428-347 a.C.) viveu em Atenas, onde fundou uma escola denominada Academia.
Para melhor sintetizar as idéias de Platão, recorremos ao Livro VII de A República, onde seu pensamento é ilustrado pelo famoso “mito da caverna”. Platão imagina uma caverna onde estão acorrentados os homens desde a infância, de tal forma que, não podendo se voltar para a entrada, apenas enxergam o fundo da caverna. Aí são projetadas as sombras das coisas que passam às suas costas, onde há uma fogueira. Se um desses homens conseguisse se soltar das correntes para contemplar à luz do dia os verdadeiros objetos, quando regressasse, relatando o que viu aos seus antigos companheiros, esses o tomariam por louco, não acreditando em suas palavras.
A análise do mito pode ser feita pelo menos sob dois pontos de vista: o epistemológico (relativo ao conhecimento) e o político (relativo ao poder).
Segundo a dimensão epistemológica, o mito da caverna é uma alegoria a respeito das duas principais formas de conhecimento: na teoria das idéias, Platão distingue o mundo sensível, dos fenômenos, e o mundo inteligível, das idéias.
O mundo sensível, acessível aos sentidos, é o mundo da multiplicidade, do movimento, e é ilusório, pura sombra do verdadeiro mundo. Assim, mesmo se percebermos inúmeras abelhas dos mais variados tipos, a idéia de abelha deve ser uma, imutável, a verdadeira realidade. Com isto Platão se aproxima do instrumental teórico de Parmênides e, aliando-o aos ensinamentos de Sócrates, elabora uma teoria original.
Do seu mestre aproveita a noção nova de logos, e continuando o processo de compreensão do real, cria a palavra idéias (eidos), para referir-se à intuição intelectual, distinta da intuição sensível.
Portanto, acima do ilusório mundo sensível, há o mundo das idéias gerais, das essências imutáveis que o homem atinge pela contemplação e pela depuração dos enganos dos sentidos.
Sendo as idéias a única verdade, o mundo dos fenômenos só existe na medida em que participa do mundo das idéias, do qual é apenas sombra ou cópia. Por exemplo, um cavalo só é cavalo enquanto participa da idéia de “cavalo em si”. Trata-se da teoria da participação, mais tarde duramente criticada por Aristóteles.
Para Platão há uma dialética que fará a alma elevar-se das coisas múltiplas e mutáveis às idéias unas e imutáveis. As idéias gerais são hierarquizadas, e no topo delas está a idéia do Bem, a mais alta em perfeição e a mais geral de todas: os seres e as coisas não existem senão enquanto participam do Bem. E o Bem supremo é também a Suprema Beleza É o Deus de Platão.
Se lembrarmos o que foi dito a respeito dos pré-socráticos, podemos verificar que Platão tenta superar a oposição instalada pelo pensamento de Heráclito, que afirmava a mutabilidade essencial do ser, e a posição de Parmênides, para o qual o ser é imóvel. Platão resolve o problema: o mundo das idéias se refere ao ser parmenídeo, e o mundo dos fenômenos ao devir heraclitiano.
Mas como é possível aos homens ultrapassarem o mundo das aparências ilusórias? Platão supõe que os homens já teriam vivido como puro espírito quando contemplaram o mundo das idéias. Mas tudo esquecem quando se degradam ao se tornaram prisioneiros do corpo, que é considerado o “túmulo da alma”. Pela teoria da reminiscência, Platão explica como os sentidos se constituem apenas na ocasião para despertar nas almas as lembranças adormecidas. Em outras palavras, conhecer é lembrar. No diálogo Menon, Platão descreve como um escravo, ao examinar figuras sensíveis que lhe são oferecidas, é introduzido a “lembrar-se” das idéias e descobre uma verdade geométrica.
Voltando ao mito das cavernas: o filósofo (aquele que se libertou das correntes), ao contemplar a verdadeira realidade e ter passado da opinião (doxa) à ciência (episteme), deve retornar ao meio dos homens para orientá-los.
Eis assim a segunda dimensão do mito, a política, surgida da pergunta: como influenciar os homens que não vêem? Cabe ao sábio ensinar a governar. Trata-se da necessidade da ação política, da transformação dos homens e da sociedade, desde que essa ação seja dirigida pelo modelo ideal contemplado.
(ARANHA, M. Lúcia & MARTINS, M. Helena P. Filosofando 2ª ed. Rev. São Paulo: Moderna, 1993, pp. 95-96)

A utopia platônica: A República
No livro VII de A República, Platão ilustra o seu pensamento como o famoso mito da caverna [...]. Vimos que o mito pode dar margem a uma interpretação epistemológica, pela qual se explica a teoria das idéias platônica. Segunda ela, o filósofo, representado por aquele que se liberta das correntes ao contemplar a verdadeira realidade, passa da opinião à ciência e deve retornar ao meio dos homens para orientá-los.
Deriva daí a segunda interpretação do mito da caverna, que resulta da dimensão política surgida da pergunta: como influenciar os homens que não vêem? Cabe ao sábio ensinar e dirigir. Trata-se da necessidade da ação política, da transformação dos homens e da sociedade, desde que essa ação seja dirigida pelo modelo ideal contemplado.
É nesse sentido que Platão imagina uma cidade utópica, a Callipolis (Cidade Bela). Etimologicamente, utopia significa “em nenhum lugar” (em grego, ou-topos). Platão imagina uma cidade que não existe, mas que deve ser o modelo da cidade ideal.
Partindo do princípio de que as pessoas são diferentes e por isso devem ocupar lugares e funções diversas na sociedade, Platão imagina que o Estado, e não a família, deveria se incumbir da educação das crianças. Para isso, propõe estabelecer-se uma forma de comunismo em que é eliminada a propriedade e a família, a fim de evitar a cobiça e os interesses decorrentes dos laços afetivos, além da degenerescência das ligações inadequadas.
O Estado orientaria as formas de eugenia para evitar casamentos entre desiguais, oferecendo melhores condições de reprodução e, ao mesmo tempo, criando creches para a educação coletiva das crianças.
A educação promovida pelo Estado deveria, segundo Platão, ser igual para todos até os 20 anos, quando dar-se-ia o primeiro corte identificando as pessoas que, por possuírem “alma de bronze”, têm a sensibilidade grosseira e por isso devem se dedicar à agricultura, ao artesanato e ao comércio. Estes cuidariam da subsistência da cidade.
Os outros continuariam os estudos por mais dez anos, até o segundo corte. Aqueles que tivessem a “alma de prata” e a virtude da coragem essencial aos guerreiros constituiriam a guarda do estado, os soldados que cuidariam da defesa da cidade.
Os mais notáveis, que sobrariam desses cortes, por terem a “alma de ouro”, seriam instruídos na arte de pensar a dois, ou seja, na arte de dialogar. Estudariam filosofia, que eleva a alma até o conhecimento mais puro e é a fonte de toda verdade.
Aos cinquenta anos, aqueles que passassem como sucesso pela série de provas estariam aptos a ser admitidos no corpo supremo dos magistrados. Caberia a eles o governo da cidade, o exercício do poder, pois apenas eles teriam a ciência da política. Sua função seria manter a cidade coesa. Por serem os mais sábios, também seriam os mais justos, uma vez que justo é aquele que conhece a justiça. A justiça constitui a principal virtude, a própria condição das outras virtudes.
Se para Platão a política é “a arte de governar os homens com o seu consentimento” e o político é precisamente aquele que conhece essa difícil arte, só poderá ser chefe quem conhece a ciência política. Por isso a democracia é inadequada, pois desconhece que a igualdade deve se dar apenas na repartição dos bens, mas nunca no igual direito ao poder. Para que o Estado seja bem governado, é preciso que “os filósofos se tornem reis, ou que os reis se tornem filósofos”.
Platão propõe um modelo aristocrático de poder. No entanto, como já vimos, não se trata de uma aristocracia da riqueza, mas da inteligência, em que o poder é confiado aos melhores, ou seja, é uma sofocracia.
O rigor do Estado concebido por Platão ultrapassa de muito a proposta de educação. Se a virtude suprema é a obediência á lei, o legislador tem de conseguir o seu cumprimento pela persuasão em primeiro lugar, aguardando a atuação consentida dos cidadãos livres e racionais. Caso não o consiga, deve usar a força: a prisão, o exílio ou a morte. Da mesma forma, a censura é justificável quando visa manter a integridade do Estado.

As formas de governo
Com a utopia, Platão critica a política do seu tempo e recusa as formas de poder degeneradas. A aristocracia, por exemplo, pode se corromper em timocracia, quando culto da virtude é substituído pela forma guerreira; ou em oligarquia, quando prevalece o gosto pelas riquezas, e o censo é a medida de capacidade para o exercício do poder.
No Livro VIII de A República, Platão explica como essas formas degeneradas podem fazer surgir a democracia. Como vimos, a democracia não corresponde aos ideais platônicos porque, por definição, o povo é incapaz de possuir a ciência política. Quando o poder pertence ao povo, é fácil prevalecer a demagogia, característica do político que manipula e engana o povo (etimologicamente, “o que conduz o povo”). Platão critica a noção de igualdade na democracia, pois para ele a verdadeira igualdade é de ordem geométrica, porque se baseia no valor pessoal que é sempre desigual (já que uns são melhores do que outros), não considerando todos igualmente cidadãos.
Por fim, a democracia levaria fatalmente à tirania, a pior forma de governo, exercida pela força por um só homem e sem ter por objetivo o bem-comum. O tirano é a antítese do magistrado-filósofo.
(ARANHA, M. Lúcia & MARTINS, M. Helena P. Filosofando 2ª ed. Rev. São Paulo: Moderna, 1993, pp. 193-194)


O Pensamento de Aristóteles
A vida de Aristóteles (nascido em 384 a.C., em Estagira, na Trácia, e por isso chamado o Estagirista) pode ser divida em três fases principais: a primeira compreende o período em que ele foi discípulo de Platão; a segunda, o período em que foi preceptor de soberanos; a terceira, o período em que fundou e dirigiu a sua escola.
Discípulo de Platão
Aristóteles entrou para a Academia aos dezessete anos e nela permaneceu por mais de vinte, até a morte de Platão. Enquanto freqüentava a Academia, e ainda depois, aceitava a filosofia de Platão, isto é, a teoria das Ideias. Nas primeiras obras (no Diálogo da Filosofia, por exemplo), ele se considera platônico e manifesta grande respeito e admiração pelo mestre. Depreende-se disso que descobriu seu sistema aos poucos, enquanto ia desenvolvendo sua crítica à doutrina das Ideias, crítica já iniciada, aliás, pelo próprio Platão.
Preceptor de soberanos (347-336 a.C.)
Depois da morte de Platão, Aristóteles deixou a Academia e se tronou primeiramente conselheiro de um governante, na Ásia Menor, e mais tarde, em 343, preceptor de Alexandre Magno. Neste período desenvolveu seu sistema e escreve uma parte da Metafísica.
Com a subida de Alexandre Magno ao trono, em 336, Aristóteles deixou Tebas e, depois de uma breve permanência em Estagira, voltou para Atenas.
Fundador da Escola Peripatética (335-322 a.C.)
Em Atenas abriu, por conta própria, uma escola que recebeu o nome de “peripatética” porque ele dava suas preleções num corredor (perípatos) do Liceu. A sua escola era uma universidade como a de Platão, mas, à diferença desta, dedicava-se preferencialmente ao estudo das ciências naturais. Morreu em 322 a.C., pouco depois de seu grande discípulo, Alexandre Magno.
As obras
Aristóteles escreveu sobre muitos assuntos e deixou em todos os campos a marca indelével do seu gênio. Nas ciências, as suas classificações das plantas e dos animais se impuseram por vinte séculos até Lineu.
Na Lógica constituiu um sistema de leis ao qual se acreditava, até meio século atrás, que não se poderia acrescentar mais nada. Seus escritos neste campo foram reunidos em uma obra denominada Órganon (Instrumento) e dividida em: Categoriae (Categorias), De interpretatione (Da interpretação), Priora analytica (Primeiros analíticos), Analytica posteriora (Segundos Analíticos), Topica (Tópicos).
Aristóteles tornou-se célebre especialmente por suas obras filosóficas. Como mais importantes podemos citar a Metafísica (14 livros), a Física (8 livros), a Ética a Nicômaco (10 livros), a Política (8 livros), o Da Alma (3 livros), o Da Geração e da Corrupção (2 livros), a Poética (1 livro, incompleto).
(MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. 7ª ed. São Paulo: Paulus, 1981, pp. 81-82.)

A Metafísica ou teoria do ser enquanto ser;
Aristóteles retoma a problemática do conhecimento e se preocupa em definir a ciência como conhecimento verdadeiro, conhecimento pelas causas, capaz de superar os enganos da opinião e de compreender a natureza do devir. Mas as analisar a oposição entre o mundo sensível e o inteligível segundo a tradição de Heráclito, Parmênides e Platão, Aristóteles recusa as soluções apresentadas e critica pormenorizadamente o mundo “separado” das idéias platônicas.
A teoria aristotélica se baseia em três distinções fundamentais, que passamos a descrever simplificadamente: substância-essência-acidente; ato-potência; forma-matéria, que por sua vez desembocam na teoria das quatro causas.
Aristóteles “traz as idéias do céu à terra”: rejeita o mundo das idéias de Platão, fundindo o mundo sensível e o inteligível no conceito da substância, enquanto “aquilo que é em si mesmo”, ou enquanto suporte dos atributos.
Ora, quando dizemos algo de uma substância, podemos nos referir a atributos que lhe convêm de tal forma que, se lhe faltassem, a substância não seria o que é. Designamos esses atributos de essência propriamente dita, e chamamos de acidente o atributo que a substância pode ter ou não, sem deixar de ser o que é. Então, a substância individual “este homem” tem como características essenciais os atributos pelos quais este homem é homem (Aristóteles diria, a essência do homem é a racionalidade) e outros, acidentais (como ser gordo, velho ou belo), atributos esses que não mudam o ser do homem em si.
No entanto, o problema das transformações dos seres ainda não se resolve com os conceitos de essência e acidente, e por isso Aristóteles recorre às noções de forma e matéria. Matéria é o princípio indeterminado de que o mundo físico é composto, é “aquilo de que é feito algo”, o que não coincide exatamente com o que nós entendemos por matéria, na física, por se caracterizar pela indeterminação. Forma é “aquilo que faz com que uma coisa seja o que é”.
Todo ser é constituído de matéria e forma, princípios indissociáveis. Enquanto a forma é o princípio inteligível, a essência comum aos indivíduos da mesma espécie, pela qual todos são o que são, a matéria é pura passividade, contendo a forma em potência. Numa estátua, por exemplo, a matéria (que nesse caso é a matéria segunda, pois já tem alguma determinação) é o mármore; a forma é a idéia que o escultor realiza na estátua.
É através da noção de matéria e forma que se explica o devir. Todo ser tende a tornar atual a forma que tem em si como potência. Assim, a semente, quando enterrada, tende a se desenvolver e se transformar no carvalho que era em potência.
Percebe-se aí o recurso aos dois outros conceitos, de ato e potência, que explicam como dois seres diferentes podem entrar em relação, agindo um sobre o outro. O conceito de potência não deve ser confundido com força, mas sim com a ausência de perfeição em um ser capaz de vir a possuí-la. Pois uma potência é a capacidade de tornar-se alguma coisa e, para tal, é preciso que sofra a ação de outro ser já em ato. A semente que contém o carvalho em potência foi gerada por um carvalho em ato.
O movimento é, pois, a passagem da potência para o ato. O movimento é “o ato de um ser em potência enquanto tal”, é a potência se atualizando. Tais considerações levam à distinção dos diversos tipos de movimento e às causas do movimento ou teoria das quatro causas: as mudanças derivam da causa material, da causa formal, da causa eficiente e da causa final.
Mesmo ainda considerando o postulado parmenídeo de que o ser é idêntico ao pensar, Aristóteles pode superar Parmênides e Platão ao usar os conceitos acima expostos, pelos quais se compreende a imutabilidade e a mudança, o acidental e o essencial, o individual e o universal. Se conhecer é lida com conceitos universais, é também aplicar esses conhecimentos a cada coisa individual. Com isso, nem é preciso justificar a imobilidade do ser, nem criar o mundo das essências imutáveis...
Vimos como a filosofia grega, desde o momento em que se destaca do pensamento mítico, elabora conceitos para instrumentalizar a razão no esforço de compreensão do real.
Entre as diversas e importantes contribuições do pensamento grego, destaca-se o caminho percorrido por Parmênides, Platão e Aristóteles na busca dos conceitos que explicassem o ser em geral e que hoje reconhecemos como sendo o assunto tratado pela parte da filosofia denominada metafísica.
Há uma curiosidade em torno da origem do nome metafísica. Embora sempre façamos referência à metafísica de Aristóteles, ele próprio usava a denominação filosofia primeira. O termo metafísica surgiu no século I a.C., quando Andrônico de Rodes, ao classificar as obras de Aristóteles, colocou a Filosofia primeira depois das obras de Física: Meta Física, ou seja, “depois da Física”.
De qualquer forma, nada impediu que esse “depois”, puramente espacial, fosse considerado “além”, no sentido de tratar de assuntos que transcendem a física, que estão além dela porque ultrapassam as questões postas a partir do conhecimento do mundo sensível. Portanto, no sentido pelo qual o conhecemos hoje, o termo só começou a ser aplicado a partir do século V da nossa era.
A filosofia primeira não é primeira na ordem no conhecer, já que partimos do conhecimento sensível, mas a que busca as causas mais universais (e portanto as mais distantes do sentidos) e que são as mais fundamentais na ordem real. Trata-se da parte nuclear da filosofia, onde se estuda “o ser enquanto ser”, isto é, o ser independentemente de suas determinações particulares.
É a metafísica que fornece a todas as outras ciências o fundamento comum, o objeto ao qual todas se referem e os princípios dos quais dependem. Ou seja, todas as ciências se referem continuamente ao ser e a diversos conceitos ligados diretamente a ele, tais como identidade, oposição, diferença, gênero, espécie, todo, parte, perfeição, unidade, necessidade, possibilidade, realidade etc. Mas nenhuma ciência examina tais conceitos. É nesse sentido que consideramos que o objeto da metafísica consiste em examinar o ser e suas propriedades.
(ARANHA, M. Lúcia & MARTINS, M. Helena P. Filosofando 2ª ed. Rev. São Paulo: Moderna, 1993, pp. 97-99)

A Ética e Política
Ética
A felicidade consiste na plena realização das próprias capacidades. Partindo deste princípio, Aristóteles demonstra que a felicidade do homem não pode consistir nas riquezas, nem nas honrarias, nem nos prazeres, porque nenhuma dessas coisas representa a plena realização das capacidades humanas.
O homem é um ser racional. Consequentemente o seu bem ou a sua felicidade (eudaimonia) deve consistir na atuação da razão. Segundo Aristóteles, a perfeita atuação da razão verifica-se na contemplação. Logo, a felicidade do homem consiste na contemplação.
Mas, não só a contemplação, porque o homem não é pura razão, nem puro espírito, mas também carne e sentidos. Para que o homem seja realmente feliz é necessário que sejam satisfeitas todas as suas faculdades, também as dos sentidos. A satisfação dos sentidos chama-se prazer. Logo, a verdadeira felicidade é constituída pelo prazer junto com a contemplação, em harmonia com a contemplação e a seu serviço.
As riquezas não são indispensáveis para a felicidade, embora certa quantidade de bens seja necessária para que seja possível ao homem entregar-se à contemplação sem ser perturbado por outras preocupações.
Como se vê, o ideal aristotélico de felicidade é semelhante ao ideal descrito por Platão no Filebo: é uma mistura dosada de prazer e de razão. É um ideal bem menos ascético do que o descrito por Platão na República e do que o seguido por Sócrates.
Aristóteles não crê que o justo seja propriamente feliz no meio dos sofrimentos.
O meio para se conseguir a felicidade é a virtude. Por virtude Aristóteles entende “o hábito de escolher o justo meio”. Quem o estabelece é o sábio. A definição completa soa assim: “A virtude é uma disposição para escolher; ela consiste na escolha do justo meio relativo à nossa natureza, efetuada segundo um princípio racional e fixado pelo homem prudente” [4].
Em outras palavras, a virtude é o hábito de praticar ações que estejam no meio entre dois excessos. Daí o dito conhecido: “In médio stat virtus” (a virtude está no meio).
“As ações estão sujeitas a se tornarem imperfeitas ou por defeito ou por excesso; por exemplo, tanto os exercícios excessivos quando os escassos prejudicam o vigor; o beber e o comer superabundantes ou insuficientes arruínam a saúde. O mesmo se dá com a moderação, a coragem e as outras virtudes; de fato, que foge ou teme todas as coisas e não enfrenta nada, torna-se tímido; quem, ao contrário, não teme nada, enfrenta qualquer coisa e se torna temerário; quem goza toda sorte de prazeres e não se abstém de nenhum, torna-se intemperante; mas quem evita todos os prazeres, torna-se insensível. De modo que também a moderação e a coragem são arruinadas tanto pelo excesso como pela deficiência, mas são preservadas pela via do meio”[5]
Como se vê, Aristóteles não identifica a virtude com o saber, como fizera Platão, mas dá importância também à escolha, a qual depende mais da vontade do que da razão.
Em seguida Aristóteles divide a virtude em dois grupos principais: virtudes do intelecto ou dianoéticas e virtude morais.
As virtudes dianoéticas são as eu concorrem para o desenvolvimento e o funcionamento das faculdades intelctivas. Para ele, as virtudes dianoéticas são cinco: ciência intuitiva (nuos), ciência intelectiva (episteme), sabedoria (sophia), arte (téchne) e ciência prática (phrónesis).
A sabedoria é uma síntese de ciência intuitiva e intelectiva. O seu objeto é o fim, ao passo que o objeto da ciência prática são os meios.
As virtudes morais são as que presidem ao controle das paixões e à escolha dos meios aptos para a consecução do fim. As virtudes morais mais importantes são as quatro virtudes chamadas cardeais. A prudência corrige o intelecto, isto é, torna-o capaz de avaliar com exatidão a bondade ou a malícia, em outras palavras, o caráter moral de uma ação. A temperança corrige o apetite concupiscível, e a fortaleza, o apetite irascível. A justiça rege o comportamento do home em relação aos outros homens.
Existem duas espécies principais de justiça: distributiva e corretiva. A primeira diz respeito à reta distribuição, ou seja, à distribuição, por parte do estado, das honras, dos cargos e dos bens materiais aos cidadãos, segundo os méritos. A segunda diz respeito à imposição das penas aos transgressores da lei e à restituição aos legítimos donos daquilo de que foram privados.
Entre as virtudes examinadas por Aristóteles, ocupa lugar de relevo a amizade. Segundo ele, a amizade é tão importante que sem ela não pode haver felicidade. Esta última consiste primariamente no exercício das virtudes especulativas e secundariamente no exercício das virtudes morais. Quem se contenta com o exercício das virtudes morais é feliz (eudáimon), quem se dedica especialmente ao exercício das virtudes especulativas é felicíssimo (eudaimonéstatos). De modo geral, Aristóteles considera o exercício das virtudes morais como um meio que facilita o exercício das virtudes especulativas. A essência da felicidade consiste na contemplação.

A Política
Segundo Aristóteles, a origem do estado é natural e não convencional, como afirmavam os sofistas e, em parte, também Platão. Os homens unem-se para formar a sociedade não em virtude de um pacto, mas instintivamente, porque de outro modo não poderiam satisfazer a todas as suas necessidades físicas e intelectuais.
“É evidente”, diz Aristóteles, “que o estado é uma criação da natureza e que o homem é por natureza um animal político. Se alguém por natureza e não só acidentalmente, vive fora do Estado, é superior ou inferior ao homem”. “quem é incapaz de viver em sociedade, ou não precisa dela por ser auto-suficiente, deve ser um animal ou um Deus”.[6]
O Estado surge pelo seguinte motivo: tornar possível não só a vida (toũ zen éneka, por causa da vida), mas também a vida feliz (toũ eũ zen, por causa “do viver feliz”). O escopo da vida humana é a felicidade; o escopo do Estado é facilitar a consecução da felicidade. Só o Estado torna possível a completa realização de todas as capacidades humanas.
Partindo do princípio segundo o qual a finalidade do Estado é facilitar a consecução do bem-comum, em outras palavras, de que a finalidade do Estado é o bem-comum, Aristóteles divide as constituições possíveis em justas e injustas. Há três formas de constituição justa e três de injusta.
Constituições justas são as que servem ao bem-comum e não ao bem dos governantes. Tais são: a monarquia ou o governo de um só que cuida do bem de todos; a aristocracia ou o governo dos virtuosos, dos melhores, que cuidam do em de todos, sem atribuir-se nenhum privilégio; a república ou a politía, isto é, o governo popular que cuida do bem de toda a cidade.
Constituições injustas são as que servem ao bem dos governantes e não ao bem-comum. São elas: a tirania ou o governo de um só que procura o interesse próprio; a oligarquia ou o governo dos ricos que procuram o bem econômico pessoal; a democracia ou o comando da massa popular que quer suprimir toda diferença social em nome da igualdade.
Como todos os outros pensadores da antiguidade, também Aristóteles justifica a escravidão: “É evidente”, diz ele, “ que alguns homens são por natureza livres e outros escravos”.[7]
(MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. 7ª ed. São Paulo: Paulus, 1981, pp. 101-104.)

A Lógica (raciocínio lógico formal)
Aristóteles foi o primeiro a fazer um estudo sistemático dos conceitos (isto e idéias), procurando descobrir as propriedades que eles têm enquanto produzidos pela nossa mente, como podem ser unidos e separados, divididos e definidos, e como é possível tirar conceitos novos de conceitos conhecidos anteriormente. Os resultados dessas pesquisas se encontram no Órganon, obra que se divide em cinco livros. Este nome não foi dado pelo autor, mas pelos estudiosos bizantinos que procuraram reunir todas as obras lógicas de Aristóteles em um só volume. Órganon significa “instrumento”; a lógica é, de fato, o instrumento do pensamento.
Para Aristóteles todas as idéias podem ser reduzidas a dez grandes grupos, chamados predicamentos ou categorias. As dez categorias são: substância, qualidade, quantidade, ação, paixão, relação, tempo, lugar, posição, hábito.
Todas as idéias têm compreensão (abrangem certas características, perfeições ou qualidades), extensões (isto é, são aplicáveis a certo número de coisas) e predicabilidade. Na predicabilidade, Aristóteles distingue quatro modos (chamados os quatro predicáveis) de se atribuir uma idéia a um sujeito: a idéia exprime um elemento essencial, mas não determinante do sujeito (gênero), ou um elemento essencial determinante (diferença específica), ou um elemento acidental próprio ( acidente próprio), ou um elemento puramente acidental (simples acidente).
Porfírio, um comentador de Aristóteles, acrescentou mais tarde um quinto predicável, a espécie, que se verifica quando o predicado diz toda a essência do sujeito.
Para deduzir conceitos novos de conceitos conhecidos anteriormente, Aristóteles elaborou uma técnica simplicíssima e, em certo sentido, perfeita: o silogismo. Ele consiste em um grupo de três proposições encadeadas de tal forma que as duas primeiras impliquem necessariamente a terceira. O silogismo pode ter várias formas, umas perfeitas, outras imperfeitas; as formas imperfeitas podem ser reduzidas às perfeitas mediante a conversão ou a transposição das premissas.
Aristóteles fala também de outra forma de raciocínio, a saber, a indução. À diferença do silogismo (que parte de proposições mais universais para chegar a proposições menos universais), a indução parte de casos particulares ou de proposições menos universais para chegar a uma proposição mais universal. O estudo dedicado por Aristóteles a este tema é elementar e muito imperfeito. Algumas de suas alusões á indução como processo para a formação dos conceitos são, todavia, muito importantes.
(MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. 7ª ed. São Paulo: Paulus, 1981, pp. 83-84.)


FILOSOFIA HELENÍSTICO-ROMANA
Prof.: Epitácio Rodrigues
Fonte: http://filosofiaprofrodrigues.blogspot.com


Depois da morte de Platão e de Aristóteles, os dois grandes nomes da Filosofia clássica grega e o advento do helenismo com Alexandre Magno, os novos filósofos mudam consideravelmente o rumo das suas investigações e as novas escolas filosóficas buscam responder como orientar a vida para encontrar a verdadeira felicidade, numa forma de organização político social, na qual os interesses coletivos cedem lugar aos interesses privados, e o conceito de cidadão desaparece, dando origem ao conceito de individuo. As principais escolas filosóficas da época são: epicurismo, estoicismo, ceticismo e ecletismo.

1. Epicurismo
Epicuro de Samos (341-270 a.C) fundou sua escola na cidade de Atenas em 306. Ela se manteve por mais de seis séculos, e se propagou depois a Roma e Oriente. De seus escritos restaram somente alguns fragmentos: máximas capitais, Cartas e Sobre a Natureza.
Ensina a seus discípulos a ataraxia (= imperturbabilidade); para consegui-la, é preciso viver às ocultas, fugindo de empreendimentos. Sua filosofia está fundamentada numa visão atomista e materialista da natureza e da alma humana.
Para Epicuro, a filosofia tem a missão de libertar o homem das turbulências que o agitam. “Deves servir à filosofia só para alcançar a verdadeira liberdade”. O que perturba o ser humano são quatro erros, dos quais ele se liberta só quando os domina e reconhece que são somente opiniões. São eles: temor dos deuses, medo da morte, ânsia dos prazeres, tristeza pelas dores. A filosofia nos oferece os quatros remédios para desprendermo-nos desses erros, através de um verdadeiro conhecimento do mundo e uma verdadeira doutrina da natureza.
Temor dos Deuses. Os deuses existem em sua divindade, em perfeita serenidade nos espaços intermundanos que os separam dos homens, alimentados pelos afluxos de átomos que equilibram o fluxo de átomos. Frente aos deuses o homem deve ter uma atitude de desinteresse, e não de culto servil de imploração e conjuros, alimentados pelo interesse e temor aos deuses.
Temor da Morte. Epicuro considera o medo da morte um temor e sofrimento desnecessário, pois o nosso nascimento é apenas o resultado de um entrechoque de átomos que se combinam originando essa unidade psicossomática que somos nós. A morte é somente a desagregação corpórea (onde reside a nossa sensibilidade) dessa unidade psicossomática, de tal forma que não sentiremos mais nada quando isso acontecer. Noutras palavras, nunca nos encontraremos com a morte, pois, enquanto existimos, ela não existe para nós, e quando ela chega, nós é que não existimos mais para ela, pois perdemos a capacidade de sentir.
Ânsia de prazeres. O verdadeiro critério de avaliação do bem e do mal é o prazer e a dor. Todos nós tendemos para o prazer, mas nem todo prazer nos conduz à felicidade; os prazeres sensuais só nos acarretam mais dor, pois a dor é proporcionada por nossas necessidades; portanto, não é este o caminho do verdadeiro prazer. Assim transmuta o prazer fugaz, pregado pelo hedonismo, em um prazer perene e permanente, que coincida com toda ausência de dor.
Temor à dor. Como dissemos antes, o prazer fugaz só acentua mais ainda a dor e a infelicidade no homem. Mas esse não é o verdadeiro prazer. O prazer perfeito não é mais que o cessar de todo desejo e de necessidades, o que só se obtêm limitando as necessidades, único meio para conseguir a calma, a imperturbabilidade (ataraxia) e a ausência de toda dor (aponía), que o sábio deve perseguir. Mediante este domínio o homem é capaz de renunciar a um prazer que não é mais que fonte de dor, e transformar um mal que é fonte de prazer perene. Neste domínio o homem chega à contemplação da verdade.

2. Estoicismo
Zenão de Citio (336-263 a.C ) fundou a Escola do pórtico (stoá). Professa uma física panteísta (A Razão é a alma do mundo). Por conseguinte, a regra suprema é viver conforme a natureza e procurar a apatia ou insensibilidade frente a bens e males. Esta escola teve famosos discípulos latinos: Sêneca (4 – 65 d.C.), o preceptor de Nero, Epicteto (50-138 d.C.), escravo liberto, o imperador Marco Aurélio (121-180 d.C.).
O homem, na filosofia estóica, é apenas um órgão desse imenso organismo chamado universo, um ser a mais dentre os seres da natureza, e sua alma é apenas uma centelha ou faísca da manifestação da alma divina ou Razão universal. Por isso, a sua liberdade consiste exatamente em compreender e conformar suas ações e vontade às leis da Razão universal, que é a razão perfeita. O estóico deve aceitar e seguir serenamente e com alegria interior a razão universal. Daí a máxima estóica “segue a natureza que é teu guia”. Epitecto, filósofo estóico, resume essa concepção de liberdade, afirmando: “Até hoje não houve coisa alguma que me trouxesse impedimento ou coação. Por quê? Porque sempre dispus minha vontade segundo a Vontade de Deus. Quer Deus que eu tenha febre? Também eu quero”. Ou seja, o ideal de liberdade consiste em compreender essa inexorabilidade do universo regido segundo as leis do Logos ou Razão universal e colocar-se em harmonia com ela, numa atitude de profunda resignação da vontade.
Como a ética estóica defende a felicidade como fim que dá sentido à vida e ao agir humano, ela é considerada finalista e eudemonista. Porém, a vinculação da ética a uma cosmologia monista e materialista[8], dá ao homem e o seu ideal de felicidade uma compreensão, em muitos aspectos, diferente da aristotélica. Para os estóicos, a vida feliz consiste numa disposição da vontade para aceitar, com serenidade, as coisas como elas são. Isso não significa uma anulação da liberdade, pois além da heróica aceitação da natureza, a ética defende que o homem pode ser livre, basta saber distinguir quais coisas e acontecimentos independem de sua vontade e que, portanto, ele não tem poder sobre elas, por exemplo: sua saúde, morte, etc.. que devem ser tratadas como realidades indiferentes. Mas, pode decidir sobre suas paixões e seus juízos. As paixões são consideradas irracionais e nos afastam da vida segundo a razão, por isso, o homem sábio é aquele capaz de viver a apatheia – apatia, no sentido filosófico estóico -, isto é, a indiferença em relação às emoções e as paixões e, através dela, alcançar a ataraxia, ou seja, o ideal de serenidade ou imperturbabilidade da alma alcançada quando se domina ou elimina as paixões e emoções.

3. Ceticismo
“O termo cetiscismo vem do sképsis, que significa “investigação”, “procura ele quer indicar mais precisamente que a sabedoria não consiste no conhecimento da verdade, mas na sua procura. De fato, o ceticismo sustenta que o homem não pode conhecer a verdade, mas somente procurá-la.
Conhecer a verdade compete a Deus; investigá-la, ao homem. Existem, pois, duas espécies de sabedoria: uma divina, e outra que consiste na investigação da verdade.
Antes de Platão e Aristóteles, já se desenvolvera a Grécia uma orientação filosófica essencialmente cética, o famoso movimento dos sofistas. Ele se revigorou e se difundiu largamente durante o período do helenismo, principalmente depois que se tornou a doutrina oficial da escola de Platão, a Academia.
Os principais expoentes do ceticismo são Pírron, Carnéades e Sexto Empírico.
Pírron é considerado geralmente como fundador do movimento; viveu entre 360 e 270 a.C. depois de participar, como cavaleiro, da campanha de Alexandre Magno no Oriente, voltou para Elís, sua pátria, onde fundou uma escola de Filosofia. Ensinou uma forma de ceticismo radical.
Partindo do princípio de que as coisas são inatingíveis ao conhecimento humano, Pírron conclui que para o homem a única atitude cabível é a suspensão (epoché) total do juízo; não se pode afirmar de coisa alguma que seja verdadeira ou falsa, justa ou injusta, e assim por diante.
Essa suspensão do juízo leva a considerar todas as coisas como indiferentes ao homem e, consequentemente, anão dar preferência a uma coisa em relação à outra.
De modo que a suspensão do juízo já é, por si mesma, uma ataraxia, ausência de qualquer perturbação e paixão. A felicidade consiste, portanto, na suspensão do juízo.
As doutrinas de Pírron tiveram larga acolhida na Academia. Isto aconteceu quando os platônicos, persuadidos da validade das críticas de Aristóteles, abandonaram a teoria das Ideias. Tirada a base sobre a qual se apoiava a confiança de Platão no conhecimento humano, não restava aos platônicos outra saída senão refugiar-se no ceticismo.
Para distinguir a escola platônica que permaneceu fiel aos ensinamentos do mestre de que, abandonando a teoria das idéias, aceitou a posição cética, a primeira foi chamada Velha Academia, e a segunda, Nova Academia. Os principais expoentes desta última são Carnéades e sexto Empírico.
Carnéades (214-129 a.C.) tempera o ceticismo radical de Pírron, admitindo para o homem a possibilidade de conhecer o que é provável, apesar de não lhe reconhecer o poder de atingir a verdade. Para ele, o sábio é aquele que, embora sabendo que a verdade é inatingível, não desiste de procurá-la assiduamente. Na vida prática, o sábio segue o que lhe parece mais próximo da verdade e do bem, o que tem a seu favor mais razões para ser considerado como válido, mesmo que não se manifeste como absolutamente certo e indiscutível.
Sexto empírico (século II d.C) dá ao ceticismo a exposição mais sistemática e rigorosa. Por vários motivos julga ele que o único sistema filosófico possível é o ceticismo. Os principais são os dois seguintes: a) o profundo desacordo entre os filósofos em relação a qualquer problema; b) os enganos dos sentidos: o conhecimento varia segundo as condições do sujeito (circunstâncias, saúde), segundo as condições do objeto (distancia, posição, ambiente, massas corpóreas) e segundo as relações (freqüência dos acontecimentos).
Com Sexto Empírico o ceticismo fecha-se em uma posição fenomenística que faz mais do que anular a própria possibilidade do saber, porque limita o conhecimento aos fenômenos e às suas relações experimentáveis, eliminando toda indagação em torno das coisas transcendentes, inverificáveis. Toda indagação metafísica é considerada vã porque fundada no princípio de causalidade e no processo silogístico. Ora, Sexto empírico contesta, ao princípio de causalidade, sucessão de fatos concomitantes ou consecutivos. Quanto ao silogismo, ele o considera um exercício formalístico vazio, que encerra o pensamento num círculo-vicioso. Sexto Empírico não reconhece o valor da lógica apodítica de Aristóteles e se abandona à contigência dos acontecimentos.” (MONDIN, Battista, p.166-118)

4. O Ecletismo

A palavra ecletismo vem do grego ekléktikós de eklegein: esconder). Hilton Japiassú e Danilo Marcondes definiram o ecletismo como um “método filosófico que consiste em retirar dos diferentes sistemas de pensamento certos elementos ou teses para difundi-los num novo sistema.” (Dicionário Básico de Filosofia, p. 81). Noutras palavras, o ecletismo era uma mistura de proposições e teorias filosóficas, não raro de modo superficial, na qual se buscava captar o melhor dos sistemas filosóficos.
Nas palavras que seguem apresentaremos uma caracterização do ecletismo feita pelo historiador da filosofia Battista Mondin: “entende-se por ecletismo a atitude filosófica para qual a procura da verdade não se esgota em apenas uma forma sistemática e dedica-se por isso a coordenar e harmonizar entre si elementos de verdade escolhidos em diversos sistemas.
O ecletismo desenvolve-se durante o período alexandrino como reação ao cepticismo.
Diante do desacordo cada vez mais grave e profundo entre os filósofos, os cépticos, como vimos, tinham perdido totalmente a confiança na capacidade da razão humana em atingir a verdade. Já os ecléticos, diante dessa situação, não julgam correto perder o ânimo, por que, segundo eles, o desacordo é sinal de incapacidade da razão não para atingir a verdade, mas para abranger a verdade com um único olhar. Para eles, o desacordo dos filósofos deve-se ao fato de que, não podendo a fraca mente humana abarcar toda a verdade com um só olhar, um filósofo limita a sua investigação a um aspecto e outro filósofo a outro aspecto. Assim, estudando aspectos diferentes da realidade, é natural que cheguem a conclusões diferentes. Por isso, para se chegar uma compreensão adequada das coisas, não se deve confiar em um só filósofo, mas é necessário reunir as conclusões das pesquisas dos melhores entre eles. É o que procuram fazer os ecléticos do período helenístico: para organizarem um sistema filosófico mais completo, reúnem os melhores aspectos das doutrinas de Platão, Aristóteles, Epicuro e Zenão de Citio.”(Curso de Filosofia, p. 118).
Um dos maiores representantes e expoente do ecletismo foi o filósofo romano Cícero, rejeitando o Epicurismo, adere ao pensamento platônico, aristotélico e estóico. Também, os padres da Igreja, apesar da ênfase dado ao platonismo, na construção do pensamento cristão, usam elementos vindos também o estoicismo. Também O Ecletismo foi uma corrente filosófica que mais influenciou os pensadores brasileiros no surgimento das primeiras manifestações filosóficas no Brasil.


A FILOSOFIA CRISTÃ
O que era a fé no pensamento cristão Medieval?
Pode-se dizer que a Fé era uma “crença irrestrita ou uma adesão incondicional às verdades reveladas por Deus aos homens. Essas verdades estavam expressas nas Sagradas Escrituras (Bíblia) e interpretadas pela autoridade da igreja.”
Segundo a Doutrina Católica, a fé era o ponto mais alto das verdades relevadas. Nada poderia se contrapor ao ensinamento da Sagrada Escritura. Nenhuma doutrina ou pensamento poderia contestar o ensinamento ou a autoridade da Igreja. Dentro deste contexto surge a discussão feita pelos grandes intelectuais do período Medieval: a relação entre Fé e Razão, entre Teologia e Filosofia.

Fides et Ratio – Fé e Razão
Dentro do grande embate entre e razão, muitos foram os intelectuais que defenderam um dos pontos de vista. Santo Ambrósio, por exemplo, afirmava que “toda verdade, dita por quem quer que seja, é de Espírito Santo.”
Isso significava dizer que nenhum conhecimento poderia se sobrepor ou contrapor às verdades relevadas por Deus e interpretadas pela Igreja. Buscar a verdade passaria a ser uma atividade em extinção, uma vez que toda a verdade havia sido revelada por Deus aos homens. “Já que o próprio Cristo havia dito ‘‘ego sum veritas.” “eu sou a verdade”. O que se poderia no máximo era demonstrar racionalmente as verdades da fé.
Pensadores ainda mais radicais que Santo Ambrósio, como foi o caso de Tertuliano, dispensaram até mesmo essa comprovação racional da fé. Esses religiosos se posicionaram contra toda a doutrina grega, ou seja, viam no pensamento de Sócrates, Platão e Aristóteles, por exemplo, um descaminho para fé ou uma abertura para o pecado, a dúvida e consequentemente para a heresia.
Se de um lado encontravam-se pensadores que defendiam a exclusão do pensamento grego, de outro lado existiram filósofos que buscaram na filosofia grega os argumentos necessários que permitissem a Igreja enfrentar os descrentes e vencer os hereges.
Nesse contexto, a filosofia Medieval pode ser dividida em quatro momentos: O dos padres Apostólicos, o dos padres Apologistas, o da Patrística e o da Escolástica. Daremos destaque neste escrito à Patrística e à Escolástica, por serem os dois momentos mais importantes.

1. A filosofia Patrística
No período de decadência do Império romano, quando o Cristianismo se expande a partir do séc. II – ainda na Antiguidade surge a filosofia dos padres da Igreja, conhecida como Patrística. Esses primeiros Padres foram os responsáveis pela elaboração de diversos textos sobre a Fé e a revelação Cristã. Esses textos tinham como finalidade apresentar ás autoridades Romanas e ao povo em geral os preceitos da Igreja.
O principal pensador desta época foi Santo Agostinho que buscou unir seus argumentos a partir da filosofia grega de caráter efetivamente platônico.

Santo Agostinho: o pecado é o afastamento de Deus
Aureliano Agostinho (354-430) nasceu em Tagaste, província romana situada na África, e faleceu em Hipona, hoje localizada na Argélia. Nessa última cidade ocupou o cargo de bispo da Igreja Católica.
Ate completar 32 anos, no entanto, Agostinho não era cristão. Havia tido até então uma vida voltada aos prazeres do mundo e, de uma ligação amorosa ilícita para a época, nascera-lhe o filho Adeodato. Havia sido também professor de Retórica em escolas romanas.
Em sua formação intelectual, Agostinho despertou primeiramente para a Filosofia com a leitura de Cícero. Posteriormente, deixou-se a influenciar pelo maniqueísmo, doutrina persa que afirmava ser o universo dominado por dois grandes princípios opostos, o bem e o mal, mantendo uma incesssante luta entre si.
Mas tarde, já insatisfeito com o maniqueísmo, viajou para Roma e Milão, entrando em contato com o ceticismo e, depois, com o neoplatonismo, movimento filosófico do período grego-romano, desenvolvido por pensadores inspirados em Platão, que se espalhou por diversas cidades do Império Romano, sendo marcado por sentimentos religiosos e crenças místicas.
Cresceu e se aprofundou, então, em Agostinho uma grande crise existencial, uma inquietação quase desesperada em busca de sentido para a vida. Foi nesse período crítico que ele se encontrou com Santo Ambrósio, bispo de Milão, sentido-se extremamente atraído por suas pregações. Pouco tempo depois, converteu-se ao cristianismo, tornando-se seu grande defensor pelo resto da vida.

A Supremacia da Alma Sobre o Corpo
Em sua obra, Agostinho argumenta em favor da superioridade da alma humana, isto é, a supremacia do espírito sobre o corpo, a matéria. Para ele, a alma teria sido criada por Deus para reinar sobre o corpo, para dirigir-lo à prática do bem.
O homem pecador, entretanto, utilizando-se do livre-arbítrio, costumaria inverter essa relação, fazendo o corpo assumir o governo da alma. Provocaria, com isso, a submissão do espírito à matéria, o que seria, para ele, equivalente à subordinação do eterno ao transitório, da essência à aparência.
A verdadeira liberdade estaria na harmonia das ações humanas com a vontade de Deus. Ser livre é servir a Deus, diz Agostinho, pois o prazer de pecar é a escravidão.
(COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia. 16ª ed. reform. e ampl. São Paulo, Saraiva, 2008, pp. 109-110)

A Teoria da Iluminação Divina
A doutrina de Santo Agostinho sobre iluminação pode ser concebida como a substituição da teoria das idéias de Platão. Segundo Platão, as almas humanas contemplaram e habitaram o mundo das idéias antes de encarnarem nos corpos e lá elas estiveram em contato com as idéias das coisas, assim na experiência concreta a alma relembra ou recorda da idéia das coisas.
Já Agostinho, diferentemente, afirma que a suprema verdade de Deus é uma espécie de Luz que ilumina a mente humana no ato do conhecimento, permitindo-a captar as idéias, compreendidas como as verdades eternas e inteligíveis presentes na própria mente divina.
Segundo Agostinho, antes de Deus criar o mundo ele já tinha a idéia em sua mente. Pode-se dizer que a teoria agostiniana é a doutrina platônica transformada com base no criacionismo e na mensagem cristã, que é, segundo Agostinho, a luz que ilumina a mente humana.
Quando cria o mundo do nada, Deus cria junto com o mundo o próprio tempo. Como o tempo está diretamente ligado ao movimento, então antes da criação do mundo não existiria o tempo, uma vez que não havia movimento antes do mundo. Deus então criou o mundo conforme a razão e, portanto, criou cada coisa conforme um modelo que ele próprio produziu com o seu pensamento, e as ideias são necessariamente estes pensamentos – modelos de Deus, e como tais são verdadeira realidade, ou seja, eternas e imutáveis e, por participação delas, existem todas as coisas. (REALE, 2003:95)
A Vontade, A Liberdade, A Graça.
Se voltarmos um pouco à filosofia grega, vamos nos lembrar do intelectualismo socrático que afirmava ser impossível conhecer o bem e fazer o mal. Agostinho se contrapõe a essa teoria, pois, para ele, a liberdade é própria da vontade e não da razão, pois essa pode conhecer bem, mas a vontade pode rejeitá-lo. A vontade tem uma autonomia própria em relação à razão, embora seja a ela ligada. A razão conhece e a vontade escolhe, podendo escolher até mesmo o irracional. Assim, o homem usa o seu livre-arbítrio para escolher uma vontade má, mesmo sabendo que tal ação é pecado. Por isso, o homem não pode ter autonomia em sua vida moral, pois mesmo quando procura viver retamente valendo-se unicamente de suas próprias forças, sem ajuda da graça divina libertadora, ele facilmente pode ser vencido pelo pecado. Daí a necessidade da Graça Divina.
A Cidade Terrena é a Cidade Divina
O mal é amor a si mesmo (soberba), o bem é amor Deus. Essas palavras são aplicadas tanto para o indivíduo quanto para a comunidade. O conjunto dos homens que tem como fim de sua ação Deus constitui a cidade celeste. Como diz o próprio Agostinho “Dois amores diversos geram as duas cidades: o amor a si mesmo, levado até o desprezo por Deus, gerou a cidade terrena; o amor a Deus, levado até o desprezo a si mesmo, gerou a cidade celeste. A cidade terrena é aquelas dos que vivem segundo o homem; a divina é a daqueles que vivem Segundo Deus.” (Cidade de Deus, p.169)

2. A Filosofia Escolástica
Mais do que um conjunto de doutrinas, entendemos por Escolástica a filosofia e a teologia que eram ensinadas nas escolas medievais. Essas escolas foram criadas primeiramente por Carlos Magno, rei dos francos coroado imperador do Ocidente em 800 pelo Papa Leão III. A partir do Séc. XIII o aristotelismo penetra profundamente no pensamento escolástico. Isso se deve principalmente pela descoberta de muitas obras de Aristóteles e a idéias entre tradução para o latim de algumas delas diretamente do grego.
O que ocorreu foi o seguinte: antes da descoberta destas obras, os europeus só tiveram contato com o aristotelismo devido à tradução feita pelos Árabes Avicena e Averróis. Por isso, no meio cristão olhava-se com restrição e desconfiança o pensamento de Aristóteles.
O que permitiu aos Árabes terem contato com as obras de Aristóteles foram às guerras religiosas no Séc. VI para difundir o Islamismo.
A questão e razão não se diluiu com o fim da Patrística, pelo contrário, manteve-se como questão basilar da Escolástica. A Escolástica pode ser dividida em três momentos:
Primeira fase: (Séc. IX ao fim do Séc. XII) – Fé e Razão mantêm uma perfeita harmonia.
Segunda fase: (Séc. XIII e principio do Séc. XIV) – Surgimento dos grandes sistemas filosóficos, destacando-se os escritos de Tomás de Aquino. Aqui Fé e Razão passam ter sua harmonia obtida apenas de maneira parcial.
Terceira fase: (Séc. XIV até o Séc. XVI) – Decadência da Escolástica e surgimento de novas teorias que realçam as diferenças entre Fé e Razão.

Santo Tomás de Aquino
Tomás de Aquino (1226-1274) nasceu em Nápoles, sul da Itália, e faleceu no convento Fossanuova, próximo de sua cidade natal, aos 49 anos de idade. É considerado um dos maiores filósofos da escolástica medieval.
A filosofia de Tomás de Aquino (o tomismo) parece que nasceu com objetivos claros: não contrariar a fé. De fato, sua finalidade era organizar um conjunto de argumentos para demonstrar e defender as revelações do cristianismo.
Assim, Tomás de Aquino reviveu em grande parte o pensamento aristotélico em busca de argumentos que explicassem os principais aspectos da fé cristã. Enfim, fez da filosofia de Aristóteles um instrumento a serviço da religião católica, ao mesmo tempo em que transformou essa filosofia numa síntese original.

Princípios básicos
Retomando as ideias de Aristóteles sobre o ser e o saber, Tomás de Aquino enfatizou a importância da realidade sensorial. Em relação ao processo de conhecimento dessa realidade, ressaltou uma série de princípios considerados básicos, dentre os quais se destacam: Principio de Não-Contradição
·    Principio da não-contradição – o ser é ou não é.  Não existe nada que possa ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo ponto de vista;
·    Princípio da substância - na existência dos seres podemos distinguir a substância (a essência, propriamente dita, de uma coisa, sem a qual ela não seria aquilo que é) do acidente (a qualidade não-essencial, acessória do ser);
·    Principio de causa eficiente – todos os seres que captamos pelos sentidos são seres contingentes, isto é, não possuem, em si próprios, a causa eficiente de suas existências. Portanto, para existir, o ser contingente depende de outro ser que representa a sua causa eficiente, chamado ser necessário;
·    Principio de Finalidade – todo ser contingente existe em função de uma finalidade, de um objetivo, de uma “razão de ser”. Enfim, todo ser contingente possui uma causa final;
·    Principio do ato e da potência – todo ser contingente possui duas dimensões: o aro e a potência. O ato representa a existência atual do ser, aquilo que está realizado e determinado. A potência representa a capacidade real do ser, aquilo que não se realizou mas pode realizar-se. É a passagem da potência ao ato que explica toda e qualquer mudança.

Distinção Entre Ser e Essência
Apesar de esses princípios terem vindos do pensamento aristotélico, não se pode dizer que Tomás de Aquino tenha apenas adaptado a filosofia de Aristóteles ao cristianismo. O que o filósofo escolástico empreendeu foi uma sistematização da doutrina cristã que se apóia em parte na filosofia aristotélica, mas que contém muitos elementos estranhos ao aristotelismo: o conceito de criação do mundo, a noção de um deus único, a idéia de que o vir-a-ser (a passagem da potência ao ato) não é autodeterminismo, mas procede de Deus.
Mas que isso, Tomás de Aquino introduziu uma distinção entre o ser e a essência, dividindo a metafísica em duas partes: a do ser em geral e a do ser pleno, que é Deus. De acordo com essa distinção, o único ser realmente pleno, no qual o ser e a essência se identificam, é Deus. Para o filósofo, Deus é o ato Puro. Não há o que se realizar ou se atualizar em Deus, pois ele é completo. Tomás de Aquino dirá que Deus é Se, e o mundo tem ser. Ou seja, Deus é o Ser que existe como fundamento da realidade as outras essências que, uma vez existentes, participam de seu ser.
Isso equivale a dizer que, nas outras criaturas, o ser é diferente da essência, pois as criaturas são seres não-necessários. É Deus que permite às essências realizarem-se em entes, em seres existentes.

As provas da existência de Deus
Outro aspecto importante da filosofia tomista são as provas da existência de Deus. Em um de seus mais famosos livros, a Suma teológica, Tomás de Aquino propõe cinco provas da existência de Deus
1. O primeiro Motor – tudo aquilo que se move é movido por outro ser. Por sua vez, este outro ser, para que se mova, necessita também que seja movido por outro. E assim sucessivamente. Se não houvesse um primeiro ser movente, cairíamos num processo indefinido. Logo conclui Tomás de Aquino, é necessário chegar a um primeiro ser movente que não seja movido por nenhum outro. Esse ser é Deus.
2. A causa eficiente – todas as coisas existentes no mundo não possuem em si próprias a causa eficiente de suas existências. Devem ser consideradas efeitos de alguma causa. Tomás de Aquino afirma ser impossível remontar indefinidamente à procura das causas eficientes. Logo, é necessário admitir a existência de uma primeira causa eficiente, responsável pela sucessão de efeitos. Essa causa primeira é Deus.
Ser necessário e ser contingente – esse argumento é uma variante do segundo. Afirma que todo ser contingente, do mesmo modo que existe, pode deixar de existir. Ora, se todas as coisas que existem podem deixar de ser, então, alguma vez, nada existiu. Mas, se assim fosse, também agora nada existiria, pois aquilo que não existe somente começa a existir em função de algo que já exista. É preciso admitir, então, que há um ser que sempre existiu, um ser absolutamente necessário, que não tenha fora de si a causa da sua existência, mas, ao contrário, que seja a causa da necessidade de todos os seres contingentes. Esse ser necessário é Deus.
Os graus de perfeição – em relação à qualidade de todas as coisas existentes, pode-se afirmar a existência de graus diversos de perfeição. Assim, afirmamos que tal coisa é melhor que outra, ou mais bela, ou mais poderosa, ou mais verdadeira etc. Ora, se uma coisa possui “mais” ou “menos” determinada qualidade positiva, isso supõe que deve existir um ser com o máximo dessa qualidade, no nível da perfeição. Devemos admitir, então, que existe um ser com o máximo de bondade, de beleza, de poder, de verdade, sendo, portanto, um ser máximo e pleno. Esse ser é Deus.
A finalidade do ser – todas as coisas brutas, que não possuem inteligência própria, existem na natureza cumprindo uma função, um objetivo, uma finalidade, semelhante à flecha dirigida pelo arqueiro. Devemos admitir, então, que existe algum ser inteligente que dirige todas as coisas da natureza para que cumpram seu objetivo. Esses ser é Deus.
(COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia. 16ª ed. reform. e ampl. São Paulo, Saraiva, 2008, pp. 117-119)



[1] Id. Temas de Filosofia, 77-78
[2] Id. Filosofando, p. 74-75.

[3] ARANHA & MARTINS, Filosofando, p.95
[4] Ética a Nicômaco, 1106 b, 37 e 38
[5] Ibid., 1107 a-b.
[6] Política, 1253 a, 27-29.
[7] Ibid., 1254 a, 23 e 24.
[8] Fala-se em monismo estóico por considerar que para esta escola o cosmo é uno, ou seja, há uma identificação entre a Razão universal, o universo e cada ser existente, enquanto manifestação concreta desse Logos ou Razão universal que cria e dinamiza o mundo. É materialista porque entende toda a realidade como material. Para eles, até o Razão universal, é material, apesar de considerá-la uma realidade sutilíssima e capaz de penetrar todas as coisas. Os estóicos usavam a imagem do fogo para expressar seu caráter sutil e ao mesmo tempo material.

Ensaio SOBRE A OPINIÃO

“Ah, como uma cabeça banal se parece com outra! Elas realmente foram todas moldadas na mesma forma! A cada uma delas ocorre a mesma ide...