Filosofia: 3º Ano



CULTURA, RELIGIÃO E FUNDAMENTALISMO

Epitácio Rodrigues

Considerações Preliminares

Nesta e nas próximas aulas estudaremos a cultura sob a ótica da filosofia. Primeiramente apresentaremos uma noção geral de cultura, sua relação com a natureza e coma história e depois abordaremos o fenômeno religioso como uma das inúmeras manifestações da cultura humana dando ênfase ao fenômeno do fundamentalismo.
Talvez vocês se perguntem: para que estudar cultura em Filosofia? As indagações filosóficas sobre a cultura abrem um leque de questões que contribuem para uma compreensão mais aprofundada dessa realidade, dentre as quais podemos citar: a delimitação do conceito de cultura; a relação cultura e trabalho, enquanto ação humana sobre a natureza; a capacidade simbólica do ser humano que reveste de significação a natureza e tudo aquilo que ele cria através de sua ação, ou seja, a sua capacidade de atribuir significação às coisas que o tira do mundo natural e o lança no mundo humano; e, por fim, as implicações advindas dessa capacidade de criar e recriar o seu próprio mundo, na medida em que ele mesmo se vê mergulhado num universo de significações que o modelam e dizem como ele dever ser agir e viver. Noutras palavras, a questão de saber até onde o ser humano é livre frente ao próprio universo cultural por ele criado e no qual está inserido.

1. O Conceito de Cultura
Uma das nossas primeiras preocupações será de apresentar uma compreensão de cultura. O que não será uma coisa simples, pois o nosso vocabulário cotidiano está impregnado de expressões que se referem à cultura com sentidos, às vezes, totalmente diferentes. Fala-se em cultura de grão, cultura nordestina, ou ainda, em pessoa culta e sem cultura. Ora, se falamos em cultura nordestina supõe-se que todos os nordestinos participam dessa cultura, portanto a possuem de alguma forma, mas quando digo que um nordestino concreto é uma pessoa inculta, isto é, sem cultura, estou dizendo que ele tem e não tem cultura. Isso incorre numa contradição ou, no mínimo, numa grande dificuldade para se compreender o que é realmente a cultura.
Uma das formas de esclarecer estas confusões a respeito da palavra é buscar a sua origem, a sua etimologia e tentar rastrear as inflexões semânticas mais significativas sofridas por ela no decorrer dos tempos. A palavra cultura é de origem latina, vem do verbo colere, que significa “cultivar”, “criar”; “honrar”; “tomar conta” e “cuidar”.
Quando surgiu, no final do século XI,[1] a noção inicial de cultura estava relacionada ao cultivo da natureza, dando origem à palavra agricultura; à devida honra prestada aos deuses pelos homens (culto às divindades) e também ao cuidado dos adultos com as crianças (puericultura).
No período do Renascimento, por volta do século XVI, os humanistas começaram a empregar a palavra cultura com o sentido figurado de cultivo do espírito. Cultura passou a ser o desenvolvimento da capacidade intelectual e o aprimoramento das qualidades naturais dos homens.
No século XVIII, os iluministas relacionaram a expressão cultura do espírito, com as artes, ciências e letras e a partir daí passou-se a utilizar o termo cultura para designar tanto o desenvolvimento da capacidade intelectual, quanto o resultado do trabalho intelectual dos homens. Nesse período aconteceu a associação do termo cultura com o termo progresso, enquanto aprimoramento da ação humana, da autonomia individual, de domínio do homem sobre a natureza. Nas palavras de Marilena Chauí,

Cultura passa a significar os resultados daquela formação ou educação dos seres humanos, resultados expressos em obras, feitos, ações e instituições: as artes, as ciências, a Filosofia, os ofícios, a religião e o Estado. Torna-se sinônimo de civilização, pois os pensadores julgavam que os resultados da formação-educação aparecem com maior clareza e nitidez na vida social e política ou na vida civil (2001, p. 292).

No século XIX, com o avanço das Ciências da Natureza, o surgimento das Ciências Humanas e a Revolução Industrial, cresce de forma assombrosa a produção material do homem. As cidades passam por mudanças rápidas e profundas, colocando em evidência as transformações e as diferenças humanas. Daí a Filosofia e as Ciências Sociais recolocarem o tema da cultura.
Assim, no âmbito da Antropologia, uma das Ciências Sociais, vai surgir uma nova compreensão conceitual de cultura que pode ser sintetizado no modo de vida de um povo e o que resulta da sua criação. É nesse sentido que se pode entender a afirmação do antropólogo inglês Edward. B Tylor (1832-1917), para quem a cultura é “um todo complexo que abarca conhecimentos, crenças, artes, moral, leis, costumes e outras capacidades adquiridas pelo homem como integrante da sociedade” (Apud. VILA NOVA, 1992, p. 43). Reinholdo Aloysio Ullmann, na sua obra Antropologia: o homem e a cultura, ao abordar o assunto, também numa perspectiva antropológica, defende que Cultura, em sentido estrito,
Significa o modus vivendi global de que participa determinado povo. Está incluída aí a maneira de agir, o que implica uma concepção ética; a maneira de pensar, o modo de sentir. O sentir, pensar e agir manifestam-se na linguagem, no código de leis seguido, na religião praticada, na criação estética. É o que se chama, tradicionalmente, de cultura não-material. Ao mesmo tempo, porém, o modus vivendi se expressa nos instrumentos utilizados, bem como na maneira de obtê-los, nas vestimentas, nas habitações em que o homem busca abrigo. Cultura material é a designação que abrange esses itens. Há que dizer, para não deixar dúvidas, que todo comportamento humano-cultural não é herança genética, mas transmissão social. (1991, p. 84)
Como podemos perceber, as investigações antropológicas deram uma grande contribuição sentido de ampliar e abraçar a complexa gama de fenômenos materiais e simbólicos produzidos pelo ser humano em sociedade.
Portanto, a respeito da cultura, parece evidente que a dificuldade para se entender claramente a sua especificidade conceitual deve-se ao longo processo de re-elaboração a que foi sujeito o termo desde o século XI até os nossos dias.
Todavia, alguns elementos estiveram sempre presentes, a saber: a cultura é sempre uma ação criativa do homem sobre a natureza. Essa ação criativa tanto pode ser de natureza imaterial ou simbólica, como valores econômicos, éticos e estéticos, crenças, leis, normas e costumes. Isso só é possível graças à capacidade cognitiva, que o permite conhecer a realidade e alterar o significado dos objetos adaptando-os à satisfação de suas necessidades. É também a capacidade cognitiva que possibilita transmissão dos conhecimentos e técnicas de produção a outras gerações, perpetuando o saber. A ação criativa do homem pode ser de natureza material. O homem age sobre a natureza e produz objetos de artes, alimentos, indumentárias e artefatos de modo geral, graças à combinação da capacidade cognitiva com a capacidade de premer da mão humana, permitindo a manipulação da realidade e criação de instrumentos necessários à alteração da própria natureza em seu benefício.
Ou seja, a noção de cultura evoca um aspecto imaterial: modo de ser e de viver de um povo, expresso num corpo complexo de significações linguísticas criado, aceito e transmitido pelo grupo, a cultura imaterial; e também um aspecto material: produção de objetos e utensílios para a sobrevivência, conforto e organização do grupo social, a cultura material.

A NOÇÃO DE RELIGIÃO EM QUESTÃO
Epitácio Rodrigues

Antes de discutir o problema do fundamentalismo, é preciso esclarecer que a compreensão filosófica a respeito da religião é muito mais intrincada do que se costuma pensar. A primeira dificuldade é que existe um universo complexo de experiências religiosas e em cada uma delas subjaz uma compreensão de religião e de divindade diferente. A outra dificuldade reside no fato de que nem sempre um sistema religioso trabalha com uma noção de divindade, podendo inclusive se conceber experiências de ateísmo religioso. Assim, dada à complexidade de sistemas e experiências religiosas somos obrigados a unificar o conceito de religião com o qual trabalharemos neste texto. O caminho ao qual nos propomos trilhar será uma compreensão a partir das análises mais comuns do universo religioso, saber: a definição etimológica, uma definição histórico-cultural e uma definição filosófica.
A análise etimológica da palavra religião nos possibilita rastrear os primeiros entendimentos a respeito do assunto. Porém, esse não é um caminho fácil de ser trilhado. De fato, Castañeda e Vega nos apresentam em um parágrafo o tamanho dessa dificuldade ao elencar uma gama de étimos defendido pelos estudiosos do assunto na tradição filosófica clássica:

A palavra religião se derivou de: a) relegere: reler ou considerar com atenção o que tem a ver com os deuses (Cícero); religare: porque nos religa ou revincula a Deus, de quem estávamos separados (Lactâncio, Santo Agostinho): c) reeligere: eleger a Deus novamente, já que por nosso pecado nos havíamos afastado de Deus (Santo Agostinho); d) relinquere: foi-nos deixada ou transmitida pela tradição dos antepassados, e, no último termo, foi revelada a eles, algo recebido (s/d. 70).

Apesar dessa diversidade, a maioria dos estudiosos do assunto costuma afirmar que a palavra religião deriva de religio (formado pelo prefixo re – outra vez, de novo - e o verbo latino ligare – ligar, unir, vincular). Assim, o termo etimologicamente significaria: religar, reestabelecer o vínculo do mundo profano ao sagrado, céu e terra, Deus e homem, transcendência e imanência. Esse sentido parece apontar uma compreensão influenciada pela experiência do cristianismo - religião predominante no ocidente - no qual o mistério se apresenta ao ser humano como uma realidade transcendente e extra-humana e que teria, nos primórdios, estabelecido um vínculo com os humanos pautado pela fidelidade e obediência à divindade. Porém, ainda nos primórdios, a relação teândrica sofreu alguma ruptura e a religião seria então um esforço de reestabelecer o vínculo rompido pelos seres humanos.
Mas, como já foi aludido acima, não há muito consenso nessa explicação. Entre os linguistas é um fato que o termo religião deriva de religio, porém nada garante que a raiz seja religare. Muitos deles trabalham com a etimologia sugerida por Cícero, para quem religio vem de relegere, cujo significado pode ser “recolher” ou “reler”.

Nesse sentido, a religião não é, ou não é antes de mais nada, o que liga, mas o que se recolhe e relê (ou o que se relê como recolhimento): mitos, textos fundadores, um ensinamento (é a origem em hebraico da palavra Torá), um saber (é o sentido em sânscrito da palavra Veda), um ou vários livros (Bíblia em grego), uma leitura ou uma recitação (Corão em árabe), uma lei (Darma em sânscrito), princípios, regras, mandamentos (o Decálogo, no Antigo Testamento), resumindo, uma revelação ou uma tradição, mas assumida, respeitada, interiorizada, ao mesmo tempo individual e comum (é onde as duas etimologias possíveis podem se encontrar: reler, inclusive separadamente, os mesmos textos cria um liame), antiga e sempre atual, integradora (num grupo) e estruturante (tanto para o individuo como para a comunidade) (SPONVILLE, 2009, p. 27).

Apesar de nos proporcionar uma ideia do entendimento inicial do assunto, a compreensão do fenômeno religioso não se explica suficientemente apenas a partir de um conhecimento etimológico ou conceitual. Noutras palavras, não será suficiente apresentar as raízes linguísticas do termo, pois ainda que aponte para uma direção mais ou menos compreensível, inúmeras perguntas ficam no obscurantismo da generalidade conceitual.
Para se entender melhor a diversidade do fenômeno religioso é importante considerar a história dessa experiência, observando, para além de unidades discursivas, as múltiplas formas do ser humano relacionar-se com o mistério, seja ele imanente ou transcendente, nas diversas culturas ao longo da história. Nesse sentido, Piazza, na obra Religiões da Humanidade,[2] enfatiza a dimensão histórico-cultural da religião, ordenando-a em quatro grandes sistemas, observando o objetivo mais teleológico a que cada uma delas se propõe na relação com o mistério, desconsiderando a classificação tradicional em monoteísta, politeísta, panteísta etc... Assim, apesar de suas peculiaridades, elas são agrupadas em religiões de integração, de servidão, de libertação e de salvação.
Na categoria de integração estão englobadas aquelas manifestações religiosas mais primitivas nas quais as ações dos indivíduos aparecem voltadas à satisfação das necessidades básicas e mais imediatas do ser humano: comer, beber... tais religiões se caracterizam pela divinização da natureza e pela busca de integração dos indivíduos à dinâmica dessa mesma natureza. Como exemplo, cita, dentre outras, as práticas rituais dos siberianos, dos africanos e dos índios brasileiros.
As religiões de servidão que, segundo o autor, seriam aquelas cujos deuses são apresentados como grandes senhores do céu, da terra e das regiões inferiores. Nessa experiência religiosa, o homem sente-se impelido a prestar serviços rituais e homenagens às divindades em troca de benefícios imediatos. Não raro, as divindades são retratadas com características acentuadamente humanas, sejam boas ou ruins. Fazem parte desse grupo, por exemplo, as religiões da Grécia e Roma antigas.
Contudo, em suas relações com o mistério, o ser humano não é visto apenas como um ser dependente e de certo modo passivo em referência ao mistério. Em algumas formas, a base do movimento centra-se na capacidade operativa do próprio ser humano. São as religiões de libertação, nas quais estão agrupadas as experiências religiosas em que o ser humano é visto em situação degradante, cuja libertação supõe a utilização de meios éticos e técnicos, de acordo com o tipo de concepção cosmológica, antropológica ou teológica. Piazza ilustra esse fato, elucidando que o monoteísmo judaico preconiza uma libertação no sentido ético, alicerçado na observância de certos mandamentos da Torah. No panteísmo, a libertação ganha uma dimensão mais cósmica do homem com a divindade, como é o caso do hinduísmo. Já para as religiões monistas, como o budismo, a liberdade é de caráter mais psicológico e consiste no esforço humano de superação das contingências de sua natureza.
Por fim, existem as religiões de salvação, nas quais o ser humano é entendido e explicado a partir de uma narrativa sagrada de sua origem e natureza, seguida de uma queda ou pecado que gera a ruptura com o transcendente. As manifestações dessas formas religiosas, em grande medida, estão perpassadas por um esforço de súplica e busca de reparação dos pecados e suas consequências realizado apenas pela divindade, não raro, após a morte. Ou seja, é muito comum nas religiões de salvação a presença de uma escatologia. Pertencem ao grupo das religiões soteriológicas o islamismo e o cristianismo.
A sistematização do autor, ainda que seu intento seja agrupar, evidencia a amplidão do assunto e sua complexidade ao longo da história do ser humano, pondo à vista o risco no qual incorremos de realizar um ontologismo fiducial sobre o assunto, a saber: entender a experiência religiosa como uma realidade com uma forma e conteúdo único, absoluto e universal.
Assim, vamos trabalhar com um conceito amplo, intentando abranger três experiências comuns a praticamente todas as experiências místicas, seja ela transcendente ou imanente. Por religião aqui entendemos uma experiência humana de intuição de um mistério (para uns, transcendente, para outros, imanente) a partir da qual se desenvolve uma experiência mística, uma teologia ou teoria dos fundamentos ou princípios básicos dessa experiência, e um conjunto de regras de conduta ou uma ética e de rituais de celebração. Noutras palavras, uma mística ou espiritualidade, uma doutrina e uma ética e um conjunto de ritos celebrativos.

FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO
Cipriani Gabriele
1. RESUMO E OBJETIVO
O objetivo [...] é aproximar-nos do fenômeno chamado fundamentalismo buscando compreendê-lo. O termo, na linguagem comum e na imprensa, refere-se a uma realidade religiosa ou política radical, considerada uma ameaça para a sociedade contemporânea. É um conceito atribuído com muita facilidade e de forma aproximativa a grupos e comportamentos radicais também fora do mundo cristão, inclusive além do âmbito religioso em que nasceu. Fala-se, frequentemente, de fundamentalismo islâmico, de fundamentalismo judaico, de fundamentalismo hindu, mas fala-se também de fundamentalismo político, econômico, do mercado.
Como fenômeno religioso, o fundamentalismo é objeto de estudo das ciências da religião. Na história é apresentado como um movimento político-religioso conhecido também por outros nomes como integrismo ou radicalismo. Nos Estados Unidos, durante a Primeira Guerra Mundial, além de indicar uma doutrina religiosa de caráter ortodoxo e conservador, identificou também um movimento do cristianismo protestante que reafirmava a absoluta inerrância da Bíblia em sua interpretação literal.
Na mesma época, no seio da Igreja Católica, fortaleceu-se uma corrente que se opunha à tendência chamada modernista, acentuando a autoridade do magistério romano como aparece na doutrina tradicional de Pio IX e Pio X.
Em uma sociedade mono-religiosa e monocultural, o espaço para uma reflexão sobre o fundamentalismo é muito limitado. Com maior facilidade pode-se falar de integrismo e conservadorismo. Em sociedades pluriculturais, como as contemporâneas, que vivem situações de rápidas mudanças e de fragmentação cultural, as atitudes fundamentalistas aparecem com maior evidência e constituem quase uma necessidade para muitas pessoas e grupos que buscam salvaguardar sua identidade. Devido à pluralidade de expressões e correntes diferentes é mais apropriado falar em fundamentalismos, ao plural.

2. ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DE UM MOVIMENTO
O termo "fundamentalismo" nasceu em contexto religioso e desde o início foi usado para designar um movimento cristão. Tanto o movimento quanto o nome surgiram e se firmaram nos Estados Unidos, nas primeiras décadas do século passado. A corrente fundamentalista, nascida no seio do cristianismo protestante, reafirma a absoluta inerrância da Bíblia e sua autoridade suprema para a fé e para a ética. Uma série de doze opúsculos, "The Fundamentals: A testimony to the Truth" (1910-1915), expôs as doutrinas fundamentais sobre as quais a fé tradicional não deve permitir dúvidas ou adaptações: a inspiração literal da Escritura como palavra de Deus; a criação do mundo; a divindade de Jesus Cristo; sua concepção virginal, seus milagres, sua morte expiadora, sua ressurreição no corpo e sua volta futura; a realidade do pecado e a salvação por fé. Uma espera ansiosa do retorno de Jesus liga o movimento fundamentalista aos movimentos milenaristas do século XIX. Ele há de tirar os fiéis do mundo decadente condenado ao domínio do anticristo, até sua definitiva derrota e a instauração do reino milenário dos santos de Deus. Além disso, um rígido código moral pessoal e familiar identifica esses segmentos.
A questão fundamentalista, porém, não se reduz à defesa das verdades fundamentais do cristianismo, mas caracteriza-se por uma maneira específica de considerá-las, ou seja, é defendida uma formulação particular dos conteúdos da fé que não aceita nenhuma crítica. Não se trata, por exemplo, somente de defender o ato criador de Deus, mas a criação do mundo em sete dias como está relatada no primeiro capítulo de Gênesis, em oposição à teoria darwinista da evolução. Ainda que a unidade desses opúsculos não seja orgânica, sendo de diferentes autores, eles constituem uma plataforma comum contra a teologia liberal e modernista e a interpretação histórico-crítica das Escrituras.
O movimento fundamentalista não foi unitário nem conseguiu unificar o mundo protestante. Tratou-se mais de tendências de certos setores. Por isso, correntes fundamentalistas podem ser encontradas nas mais diversas denominações protestantes, às vezes, com tal força e número que algumas denominações podem ser consideradas fundamentalistas no seu conjunto. O marco fundamentalista encontra-se em movimentos pentecostais e, a partir da década de 1980, é também uma característica das congregações independentes e de adeptos de pregadores de televisão. Na expansão missionária das comunidades fundamentalistas é relevante o apoio dado aos pastores enviados para a América Latina.

3. UM MOVIMENTO PARALELO: O INTEGRISMO CATÓLICO
No início do século XX, com raízes no século XIX, também na Igreja Católica surgiu um movimento de reação ao modernismo que encontrava a simpatia de estudiosos e de membros do clero. É uma corrente a que foi dado o nome de integrismo. Seu perfil está em conformidade com o ambiente católico-romano, mas assemelha-se ao fundamentalismo protestante pelo objetivo de luta contra o modernismo e pela maneira de avaliar os fenômenos de mudança cultural e religiosa e pelo tipo de relação a ser estabelecida entre Igreja e sociedade. Enquanto, nos Estados Unidos, disputas lacerantes dividiram as maiores denominações protestantes, na Igreja Católica o poder do papa Pio X e de alguns cardeais contornaram a difusão das idéias modernistas com excomunhões e outras medidas disciplinares.
A corrente integrista, liderada pelo próprio papa Pio X, foi sustentada pela autoconsciência teológica da tradição católica em defesa da Revelação divina, da custódia do patrimônio da fé e da interpretação autorizada das Escrituras. Mas essa corrente foi levada também a um integralismo tendente a impor o domínio eclesiástico na vida, a restauração de formas de pensamento e de vida social proveniente da primeira metade do século XIX, de um conservadorismo social e hierárquico que acreditava poder encontrar a verdade apenas no âmbito que a Igreja havia construído para si desde o tempo do iluminismo.
A intolerância e o radicalismo com que essa luta foi conduzida fez não somente vítimas ilustres, mas chegou a atitudes de violência moral reprovável. As drásticas intervenções do papa Pio X e a aprovação dada à associação secreta chamada de Sodalitium Pianum ou de Sapiniére (pelo amigos e inimigos) que assumiu a missão de colher informações reservadas sobre todos os que fossem suspeitos, até cardeais ou superiores gerais de ordens religiosas, e de transmiti-las diretamente ao papa, desaguaram numa repressão indiscriminada e no fechamento hermético às correntes intelectuais não estritamente confessionais e tradicionalistas. Uma pesada atmosfera de suspeita se abateu sobre os católicos na segunda parte do pontificado de Pio X que fez levantar a voz fortemente crítica de cardeais como Gasparri, Maffi, Schuster, Mercier. O complexo de medidas restritivas tomadas naqueles anos, chegando a impedir estudantes de teologia de ler qualquer periódico, ainda que fosse dos melhores, constituíram um impedimento ao desenvolvimento dos estudos bíblicos e históricos e levaram ao extremo o afastamento da Igreja Católica do mundo moderno.
A corrente integrista foi viva e muito ativa durante e depois do Concílio Vaticano II, encontrou sua expressão extremada no arcebispo Marcel Lefebvre, que fundou sua própria Igreja, na sua opinião, fiel detentora da Tradição cristã e da verdadeira fé católica. Continua ativa ainda hoje em movimentos e organizações religiosas católicas que encontram apoio incondicionado de segmentos da hierarquia.

4. A EXTENSÃO DO CONCEITO DE FUNDAMENTALISMO
A atribuição do conceito de fundamentalismo a realidades tão diferentes exige que se estude com atenção cada caso, especialmente porque a conotação do termo é cada vez mais negativa. Já consideramos a extensão do termo no mundo protestante e católico. Vamos considerar agora um exemplo fora do mundo ocidental cristão. Hoje é praticamente inevitável não falar de "fundamentalismo islâmico".
No Islã, o extremismo religioso se desenvolve de uma maneira toda particular. As diferentes tradições muçulmanas, xiitas ou sunitas, estão de acordo em reconhecer no Alcorão a "Palavra vinda do céu", cuja autoridade ou inspiração não se pode questionar. Os ditos do Profeta também são inquestionáveis. Mas há divergências sobre o tipo de tradição que se deve privilegiar, aquela mais conciliadora ou aquela mais rígida e radical? Em época recente, a penetração da cultura ocidental, imposta também através de políticas direcionadas por interesses econômicos, tem elevado o nível de tensão e provocado choques culturais e políticos violentos. A revolução iraniana de 1979 que tirou do trono o Xá Reza Pahlevi, uniu o povo na defesa da cultura e das tradições islâmicas e na luta contra um poder explorador, levando à fundação da República Islâmica. O Ayatollah Komeini, de volta ao Irã depois de 15 anos de exílio, foi acolhido triunfalmente. Ele liderou um movimento que visava a restauração das leis corânicas e a libertação do povo muçulmano do domínio político, econômico e cultural do Ocidente. Conseguiu devolver o máximo poder, também político, dos líderes religiosos. No breve período de uma década, a revolução islâmica mostrou toda sua capacidade de unir forças em outros países muçulmanos com governantes seculares: no Afeganistão com os talebans, na Argélia com a Frente islâmica de salvação e o Grupo Islâmico Armado, no Egito com a Irmandade muçulmana e a Jihjad Islâmica, no Líbano com o Hezbollah, na Palestina com o Hamas.
O fortalecimento econômico dos estados produtores de petróleo deu aos estados de religião muçulmana também um poder político e militar estratégico nas relações internacionais. Além disso, esses países contam com a força da tradição religiosa que no Ocidente encontra-se fragmentada e debilitada. Sobre essa base, a Revolução islâmica implanta seu ideal político: instaurar um regime teocrático que seja a tradução literal da charia, a luta contra a penetração do poder e da cultura ocidental, representada especialmente pelo Estado de Israel e pelos Estados Unidos. No que diz respeito aos costumes exige-se o rompimento radical com tudo o que lhes pareça ocidental e a volta ao uso do chador ou da burka e demais costumes.
Cada vez mais percebe-se e teme-se que esteja em curso um conflito de civilizações. A opinião pública ocidental está incline a marcar com o estigma de fundamentalista toda a gama do movimento político-religioso do mundo muçulmano alimentando uma visão deformada e odiosa do Ocidente. O radicalismo religioso e cultural e a política revolucionária islâmica de hoje almejam um mundo em que todos obedeçam aos mesmos preceitos religiosos chegando a alimentar a luta armada e o terrorismo para alcançar esse objetivo. O fundamentalismo islâmico de hoje é hostil a uma certa ideia ideológica de Ocidente, tão extremada que chega a desejar sua destruição.
A aplicação do termo fundamentalismo, como bem se compreende, é transferência de um conceito originariamente circunstanciado para outras realidades e outros conteúdos. O que pode justificar essa transferência é a maneira de conduzir a defesa dos princípios religiosos ou culturais de uma sociedade que apresenta traços semelhantes aos usados por outros grupos.

5. FUNDAMENTALISMO COMO FENÔMENO RELIGIOSO
Toda religião, enraizada na sociedade humana, separa o grupo humano que nela se reconhece daqueles que praticam outra fé. Estabelece um território em que se definem e reforçam as identidades individuais e coletivas. À medida que diferencia uma comunidade da outra, a religião pode gerar conflitos ou servir de justificativa para confrontos violentos entre uma comunidade e outra. Ainda que as religiões preguem a paz, em todas as religiões se encontram pessoas ou grupos de crentes que vivem sua fé cultivando atitudes fundamentalistas. O envolvimento das religiões em guerras justifica perguntar se estas são fatores de guerra ou fatores de paz e se o fundamentalismo é ou não intrínseco a toda profissão religiosa. A pergunta se abriga na mesma estrutura institucional das religiões.
A crença num Deus absoluto e a total dedicação a ele da pessoa religiosa acabam justificando o absolutismo da crença. A partir de uma determinada formulação dos conteúdos de uma religião, tida como imutável, assumem-se atitudes de defesa e de luta contra toda e qualquer tentativa de reformulação, contra e qualquer mudança de comportamentos não consagrados pela tradição. O próprio serviço da verdade pode levar os líderes religiosos a atitudes autoritárias e violentas com a finalidade de evitar o relativismo, o sincretismo, o indiferentismo.
A recusa de distinguir entre conteúdos e suas formulações, a identificação do sentimento de total adesão de fé ao absoluto de Deus e a acolhida da sua auto-revelacão levam muitos crentes a assumir posturas de rígida defesa de sua profissão religiosa e comportamentos intolerantes.. Chegam a ponto de não admitir a possibilidade de outras identidades, negam o direito a pensamentos e a atitudes diferentes.
No interior da comunidade de fé, eles tendem a impor sua visão da tradição como a única ortodoxa, usando todos os meios, mas particularmente o poder religioso. Pode-se verificar nesses segmentos uma busca constante dos espaços de poder, uma infiltração nos postos-chave de condução das comunidades religiosas. Através da emanação de normas categóricas e invioláveis, com penas anexas para os transgressores, da formação de grupos de controle e de denúncia, instauram um verdadeiro clima de regime.
Na sociedade sua presença é também caracterizada por formas de poder. São defensores de atitudes moralistas muito rígidas, de valores ligados à cultura tradicional, quer religiosa como social. Usam publicamente costumes que ostentam sua identidade religiosa. Divulgam suas ideias de forma particularmente polêmica contra outros crentes ainda que pertençam ao mesmo credo religioso. Na política buscam entendimentos e cumplicidade com as forças conservadoras em troca da defesa e do apoio político e legal para a conservação de seu poder religioso.
Fundamentalismo e ameaça à paz parecem, cada vez mais, dois termos inseparáveis no mundo contemporâneo. Fundamentalismo e uma maneira equivocada de viver a fé também parecem companheiros inseparáveis de viagem. A expressão do escritor José Saramago em comentário ao ato terrorista de 11 de setembro de 2001 "O problema é Deus" deve servir de alerta para todos os crentes. Uma coisa é a adesão total e incondicionada a Deus, outra coisa é usar a religião em benefício de pessoas ou de grupos de poder.
Movimentos pacifistas procuram alertar sobre os riscos de atitudes fundamentalistas e contribuir para a criação de culturas de paz. No mundo religioso afirma-se cada vez mais um pluralismo de fato e de direito. O ecumenismo e o diálogo inter-religioso são apontados como caminhos irreversíveis para a reconciliação e a paz religiosa.

6. O FUNDAMENTALISMO NO MUNDO CONTEMPORÂNEO
A pluralidade religiosa e cultural está inscrita na história da humanidade. Se no passado alguns impérios souberam criar condições de convivência entre diferentes grupos humanos, os encontros entre representantes de culturas diferentes eram raros e havia territórios mais definidos para cada cultura e cada religião, também no passado as conquistas religiosas foram acompanhadas por violências e guerras.
Em nossas sociedades a situação mudou totalmente. A pluralidade religiosa não permite mais a definição segura dos territórios onde praticar em liberdade o próprio credo religioso. Crentes diferentes convivem no mesmo espaço humano. Um clima de insegurança se instaura nos indivíduos e nos grupos.
A interdependência global dos povos e das sociedades e a importância do fenômeno religioso no mundo atual dão relevância a mecanismos de intolerância e fanatismo de matriz religiosa, que complementam os outros fatores de conflito.
Entre esses mecanismos encontra-se um elemento importante: dois terços da humanidade professam religiões de origem estrangeira geralmente difundidas em tempos de expansão colonial. A revolta anti-colonial marca hoje significativamente as reações de povos e etnias e envolve os aspectos religiosos da colonização.
A globalização comercial, a migração de grandes massas humanas, a rapidez dos transportes e da comunicação, os intercâmbios culturais têm levado a uma fragmentação cultural e religiosa dentro de comunidades tradicionalmente unidas pela hegemonia de uma cultura ou de uma religião.
A possibilidade de perder a segurança enraizada em uma cultura e em uma religião é muito grande e as reações fundamentalistas frequentes. Se a vocação universalista no passado levou a visitas discretas ou agressivas de missionários a outros territórios, hoje todos os crentes em qualquer lugar devem vigiar as próprias atitudes de domínio espiritual. A conquista de espaços de presença pode alimentar a competição e acirrar polêmicas e chegar aos excessos da intolerância e do fanatismo.
A necessidade de não perder uma identidade pacientemente construída faz considerar uma ameaça a variedade de experiências possíveis em uma sociedade em mudança como a nossa. A busca de espaços de segurança e atitudes de defesa, por parte de grupos que se consideram agredidos pelo proselitismo de outros, desencadeia reações agressivas e processos de autoritarismo nas Instituições religiosas.
Volta também com força a tendência das religiões a ocupar os campos próprios da política. Desencadeiam-se processos que transferem a competição religiosa para o âmbito da política partidária e a envolvem em conflitos de interesse mais amplo, com a consequente ameaça para a paz social.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Situações diversas têm levado no passado e levam ainda hoje pessoas e grupos humanos a uma maneira semelhante de enfrentar situações de conflito religioso, político ou social. A diversidade dos conteúdos exige estudos diferenciados de cada caso, mas atitudes semelhantes levam a identificar métodos e comportamentos como fundamentalistas.
Na situação internacional atual às correntes fundamentalistas opõem-se os métodos políticos da negociação e ao fundamentalismo religioso é proposto o caminho do ecumenismo e do diálogo inter-religioso, inclusive como novos paradigmas de ação missionária para religiões que entendem seu credo como universal.
A missão cristã é desafiada a rever os paradigmas construídos em época colonial e aprofundar não somente uma espiritualidade de diálogo, mas construir um paradigma novo de missão que seja ao mesmo tempo ecumênico, inter-religioso e inter-cultural.
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
8.1. Documentos eclesiais
- CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Decreto Unitatis Redintegratio.
- CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Decreto Nostra Aetate.
- JOÃO PAULO II. Encíclica Redemptoris Missio, São Paulo: Paulinas,1990.
- PONTIFÍCIO CONSELHO PARA O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO E CONGREGAÇÃO PARA A
EVANGELIZAÇÃO DOS POVOS. Diálogo e anúncio, São Paulo: Paulinas, 1996.
8.2. Bibliografia geral
- TAMAYO, Juan José. Fundamentalismos y diálogo entre religiones. Madrid: Trotta,
2004.
7
- TEIXEIRA Faustino (org.). Diálogo de pássaros: nos caminhos do diálogo inter-religioso,
São Paulo: Paulinas, 1993.
- TEIXEIRA, Faustino. O diálogo em tempos de fundamentalismo religioso. Convergência,
v. 37, n. 356, (2003) 495-506.
- V.V.A.A. Fundamentalismo, Vida Pastoral XXXV/176, (Maio-Junho 1994).


[1] Cf. SOUZA, Sonia Maria Ribeiro de. Um Outro Olhar: Filosofia. São Paulo: FTD, 1995, p.114)
[2] PIAZZA, O. Waldomiro. Religiões da Humanidade. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 1996.

Ensaio SOBRE A OPINIÃO

“Ah, como uma cabeça banal se parece com outra! Elas realmente foram todas moldadas na mesma forma! A cada uma delas ocorre a mesma ide...