CULTURA, RELIGIÃO E FUNDAMENTALISMO
Epitácio Rodrigues
Considerações Preliminares
Nesta
e nas próximas aulas estudaremos a cultura sob a ótica da filosofia.
Primeiramente apresentaremos uma noção geral de cultura, sua relação com a
natureza e coma história e depois abordaremos o fenômeno religioso como uma das
inúmeras manifestações da cultura humana dando ênfase ao fenômeno do
fundamentalismo.
Talvez vocês se
perguntem: para que estudar cultura em Filosofia? As indagações filosóficas
sobre a cultura abrem um leque de questões que contribuem para uma compreensão
mais aprofundada dessa realidade, dentre as quais podemos citar: a delimitação
do conceito de cultura; a relação cultura e trabalho, enquanto ação humana
sobre a natureza; a capacidade simbólica do ser humano que reveste de
significação a natureza e tudo aquilo que ele cria através de sua ação, ou
seja, a sua capacidade de atribuir significação às coisas que o tira do mundo
natural e o lança no mundo humano; e, por fim, as implicações advindas dessa
capacidade de criar e recriar o seu próprio mundo, na medida em que ele mesmo
se vê mergulhado num universo de significações que o modelam e dizem como ele
dever ser agir e viver. Noutras palavras, a questão de saber até onde o ser
humano é livre frente ao próprio universo cultural por ele criado e no qual
está inserido.
1.
O Conceito de Cultura
Uma
das nossas primeiras preocupações será de apresentar uma compreensão de
cultura. O que não será uma coisa simples, pois o nosso vocabulário cotidiano
está impregnado de expressões que se referem à cultura com sentidos, às vezes,
totalmente diferentes. Fala-se em cultura de grão, cultura nordestina, ou
ainda, em pessoa culta e sem cultura. Ora, se falamos em cultura nordestina
supõe-se que todos os nordestinos participam dessa cultura, portanto a possuem
de alguma forma, mas quando digo que um nordestino concreto é uma pessoa
inculta, isto é, sem cultura, estou dizendo que ele tem e não tem cultura. Isso
incorre numa contradição ou, no mínimo, numa grande dificuldade para se
compreender o que é realmente a cultura.
Uma
das formas de esclarecer estas confusões a respeito da palavra é buscar a sua
origem, a sua etimologia e tentar rastrear as inflexões semânticas mais
significativas sofridas por ela no decorrer dos tempos. A palavra cultura é de
origem latina, vem do verbo colere, que significa “cultivar”, “criar”;
“honrar”; “tomar conta” e “cuidar”.
Quando
surgiu, no final do século XI,[1] a
noção inicial de cultura estava relacionada ao cultivo da natureza, dando
origem à palavra agricultura; à devida honra prestada aos deuses pelos
homens (culto às divindades) e também ao cuidado dos adultos com as
crianças (puericultura).
No
período do Renascimento, por volta do século XVI, os humanistas começaram a
empregar a palavra cultura com o sentido figurado de cultivo do espírito.
Cultura passou a ser o desenvolvimento da capacidade intelectual e o
aprimoramento das qualidades naturais dos homens.
No
século XVIII, os iluministas relacionaram a expressão cultura do espírito, com
as artes, ciências e letras e a partir daí passou-se a utilizar o termo cultura
para designar tanto o desenvolvimento da capacidade intelectual, quanto o
resultado do trabalho intelectual dos homens. Nesse período aconteceu a
associação do termo cultura com o termo progresso, enquanto
aprimoramento da ação humana, da autonomia individual, de domínio do homem
sobre a natureza. Nas palavras de Marilena Chauí,
Cultura
passa a significar os resultados daquela formação ou educação dos seres
humanos, resultados expressos em obras, feitos, ações e instituições: as artes,
as ciências, a Filosofia, os ofícios, a religião e o Estado. Torna-se sinônimo
de civilização, pois os pensadores julgavam que os resultados da
formação-educação aparecem com maior clareza e nitidez na vida social e
política ou na vida civil (2001, p. 292).
No século XIX,
com o avanço das Ciências da Natureza, o surgimento das Ciências Humanas e a
Revolução Industrial, cresce de forma assombrosa a produção material do homem.
As cidades passam por mudanças rápidas e profundas, colocando em evidência as
transformações e as diferenças humanas. Daí a Filosofia e as Ciências Sociais
recolocarem o tema da cultura.
Assim,
no âmbito da Antropologia, uma das Ciências Sociais, vai surgir uma nova
compreensão conceitual de cultura que pode ser sintetizado no modo de vida de
um povo e o que resulta da sua criação. É nesse sentido que se pode entender a
afirmação do antropólogo inglês Edward. B Tylor (1832-1917), para quem a
cultura é “um todo complexo que abarca conhecimentos, crenças, artes, moral,
leis, costumes e outras capacidades adquiridas pelo homem como integrante da
sociedade” (Apud. VILA NOVA, 1992, p. 43). Reinholdo Aloysio Ullmann, na
sua obra Antropologia: o homem e a cultura, ao abordar o assunto, também
numa perspectiva antropológica, defende que Cultura, em sentido estrito,
Significa o modus vivendi
global de que participa determinado povo. Está incluída aí a maneira de agir, o
que implica uma concepção ética; a maneira de pensar, o modo de sentir. O
sentir, pensar e agir manifestam-se na linguagem, no código de leis seguido, na
religião praticada, na criação estética. É o que se chama, tradicionalmente, de
cultura não-material. Ao mesmo tempo, porém, o modus vivendi se expressa
nos instrumentos utilizados, bem como na maneira de obtê-los, nas vestimentas,
nas habitações em que o homem busca abrigo. Cultura material é a designação que
abrange esses itens. Há que dizer, para não deixar dúvidas, que todo
comportamento humano-cultural não é herança genética, mas transmissão social.
(1991, p. 84)
Como
podemos perceber, as investigações antropológicas deram uma grande contribuição
sentido de ampliar e abraçar a complexa gama de fenômenos materiais e
simbólicos produzidos pelo ser humano em sociedade.
Portanto,
a respeito da cultura, parece evidente que a dificuldade para se entender
claramente a sua especificidade conceitual deve-se ao longo processo de
re-elaboração a que foi sujeito o termo desde o século XI até os nossos dias.
Todavia,
alguns elementos estiveram sempre presentes, a saber: a cultura é sempre uma
ação criativa do homem sobre a natureza. Essa ação criativa tanto pode ser de
natureza imaterial ou simbólica, como valores econômicos, éticos e estéticos,
crenças, leis, normas e costumes. Isso só é possível graças à capacidade
cognitiva, que o permite conhecer a realidade e alterar o significado dos
objetos adaptando-os à satisfação de suas necessidades. É também a capacidade
cognitiva que possibilita transmissão dos conhecimentos e técnicas de produção
a outras gerações, perpetuando o saber. A ação criativa do homem pode ser de
natureza material. O homem age sobre a natureza e produz objetos de artes,
alimentos, indumentárias e artefatos de modo geral, graças à combinação da capacidade
cognitiva com a capacidade de premer da mão humana, permitindo a
manipulação da realidade e criação de instrumentos necessários à alteração da
própria natureza em seu benefício.
Ou
seja, a noção de cultura evoca um aspecto imaterial: modo de ser e de viver de
um povo, expresso num corpo complexo de significações linguísticas criado,
aceito e transmitido pelo grupo, a cultura imaterial; e também um aspecto
material: produção de objetos e utensílios para a sobrevivência, conforto e
organização do grupo social, a cultura material.
A NOÇÃO DE
RELIGIÃO EM QUESTÃO
Epitácio
Rodrigues
Antes de discutir o problema do fundamentalismo, é
preciso esclarecer que a compreensão filosófica a respeito da religião é muito
mais intrincada do que se costuma pensar. A primeira dificuldade é que existe
um universo complexo de experiências religiosas e em cada uma delas subjaz uma
compreensão de religião e de divindade diferente. A outra dificuldade reside no
fato de que nem sempre um sistema religioso trabalha com uma noção de
divindade, podendo inclusive se conceber experiências de ateísmo religioso.
Assim, dada à complexidade de sistemas e experiências religiosas somos
obrigados a unificar o conceito de religião com o qual trabalharemos neste
texto. O caminho ao qual nos propomos trilhar será uma compreensão a partir das
análises mais comuns do universo religioso, saber: a definição etimológica, uma
definição histórico-cultural e uma definição filosófica.
A análise etimológica da palavra religião nos
possibilita rastrear os primeiros entendimentos a respeito do assunto. Porém,
esse não é um caminho fácil de ser trilhado. De fato, Castañeda e Vega nos
apresentam em um parágrafo o tamanho dessa dificuldade ao elencar uma gama de
étimos defendido pelos estudiosos do assunto na tradição filosófica clássica:
A palavra religião se derivou de: a) relegere:
reler ou considerar com atenção o que tem a ver com os deuses (Cícero); religare: porque nos religa ou revincula
a Deus, de quem estávamos separados (Lactâncio, Santo Agostinho): c) reeligere: eleger a Deus novamente, já
que por nosso pecado nos havíamos afastado de Deus (Santo Agostinho); d) relinquere: foi-nos deixada ou
transmitida pela tradição dos antepassados, e, no último termo, foi revelada a
eles, algo recebido (s/d. 70).
Apesar dessa diversidade, a maioria dos estudiosos do
assunto costuma afirmar que a palavra religião deriva de religio (formado pelo prefixo re
– outra vez, de novo - e o verbo latino ligare
– ligar, unir, vincular). Assim, o termo etimologicamente significaria:
religar, reestabelecer o vínculo do mundo profano ao sagrado, céu e terra, Deus
e homem, transcendência e imanência. Esse sentido parece apontar uma
compreensão influenciada pela experiência do cristianismo - religião
predominante no ocidente - no qual o mistério se apresenta ao ser humano como
uma realidade transcendente e extra-humana e que teria, nos primórdios,
estabelecido um vínculo com os humanos pautado pela fidelidade e obediência à
divindade. Porém, ainda nos primórdios, a relação teândrica sofreu alguma
ruptura e a religião seria então um esforço de reestabelecer o vínculo rompido
pelos seres humanos.
Mas, como já foi aludido acima, não há muito consenso
nessa explicação. Entre os linguistas é um fato que o termo religião deriva de religio, porém nada garante que a raiz seja religare. Muitos deles trabalham com a etimologia sugerida por
Cícero, para quem religio vem de relegere, cujo significado pode ser
“recolher” ou “reler”.
Nesse sentido, a religião não é, ou não é
antes de mais nada, o que liga, mas o que se recolhe e relê (ou o que se relê
como recolhimento): mitos, textos fundadores, um ensinamento (é a origem em
hebraico da palavra Torá), um saber
(é o sentido em sânscrito da palavra Veda),
um ou vários livros (Bíblia em
grego), uma leitura ou uma recitação (Corão
em árabe), uma lei (Darma em
sânscrito), princípios, regras, mandamentos (o Decálogo, no Antigo Testamento),
resumindo, uma revelação ou uma tradição, mas assumida, respeitada,
interiorizada, ao mesmo tempo individual e comum (é onde as duas etimologias
possíveis podem se encontrar: reler, inclusive separadamente, os mesmos textos
cria um liame), antiga e sempre atual, integradora (num grupo) e estruturante
(tanto para o individuo como para a comunidade) (SPONVILLE, 2009, p. 27).
Apesar de nos proporcionar uma ideia do entendimento
inicial do assunto, a compreensão do fenômeno religioso não se explica
suficientemente apenas a partir de um conhecimento etimológico ou conceitual.
Noutras palavras, não será suficiente apresentar as raízes linguísticas do
termo, pois ainda que aponte para uma direção mais ou menos compreensível,
inúmeras perguntas ficam no obscurantismo da generalidade conceitual.
Para se entender melhor a diversidade do fenômeno
religioso é importante considerar a história dessa experiência, observando,
para além de unidades discursivas, as múltiplas formas do ser humano
relacionar-se com o mistério, seja ele imanente ou transcendente, nas diversas
culturas ao longo da história. Nesse sentido, Piazza, na obra Religiões da Humanidade,[2]
enfatiza a dimensão histórico-cultural da religião, ordenando-a em quatro
grandes sistemas, observando o objetivo mais teleológico a que cada uma delas
se propõe na relação com o mistério, desconsiderando a classificação
tradicional em monoteísta, politeísta, panteísta etc... Assim, apesar de suas
peculiaridades, elas são agrupadas em religiões de integração, de servidão, de
libertação e de salvação.
Na
categoria de integração estão englobadas aquelas manifestações religiosas mais
primitivas nas quais as ações dos indivíduos aparecem voltadas à satisfação das
necessidades básicas e mais imediatas do ser humano: comer, beber... tais
religiões se caracterizam pela divinização da natureza e pela busca de
integração dos indivíduos à dinâmica dessa mesma natureza. Como exemplo, cita,
dentre outras, as práticas rituais dos siberianos, dos africanos e dos índios
brasileiros.
As
religiões de servidão que, segundo o autor, seriam aquelas cujos deuses são
apresentados como grandes senhores do céu, da terra e das regiões inferiores.
Nessa experiência religiosa, o homem sente-se impelido a prestar serviços
rituais e homenagens às divindades em troca de benefícios imediatos. Não raro,
as divindades são retratadas com características acentuadamente humanas, sejam
boas ou ruins. Fazem parte desse grupo, por exemplo, as religiões da Grécia e
Roma antigas.
Contudo,
em suas relações com o mistério, o ser humano não é visto apenas como um ser
dependente e de certo modo passivo em referência ao mistério. Em algumas
formas, a base do movimento centra-se na capacidade operativa do próprio ser
humano. São as religiões de libertação, nas quais estão agrupadas as experiências
religiosas em que o ser humano é visto em situação degradante, cuja libertação
supõe a utilização de meios éticos e técnicos, de acordo com o tipo de
concepção cosmológica, antropológica ou teológica. Piazza ilustra esse fato,
elucidando que o monoteísmo judaico
preconiza uma libertação no sentido ético, alicerçado na observância de certos
mandamentos da Torah. No panteísmo, a
libertação ganha uma dimensão mais cósmica do homem com a divindade, como é o
caso do hinduísmo. Já para as religiões monistas,
como o budismo, a liberdade é de caráter mais psicológico e consiste no esforço
humano de superação das contingências de sua natureza.
Por
fim, existem as religiões de salvação, nas quais o ser humano é entendido e
explicado a partir de uma narrativa sagrada de sua origem e natureza, seguida
de uma queda ou pecado que gera a
ruptura com o transcendente. As manifestações dessas formas religiosas, em
grande medida, estão perpassadas por um esforço de súplica e busca de reparação
dos pecados e suas consequências realizado apenas pela divindade, não raro,
após a morte. Ou seja, é muito comum nas religiões de salvação a presença de
uma escatologia. Pertencem ao grupo das religiões soteriológicas o islamismo e
o cristianismo.
A
sistematização do autor, ainda que seu intento seja agrupar, evidencia a
amplidão do assunto e sua complexidade ao longo da história do ser humano,
pondo à vista o risco no qual incorremos de realizar um ontologismo fiducial
sobre o assunto, a saber: entender a experiência religiosa como uma realidade
com uma forma e conteúdo único, absoluto e universal.
Assim, vamos trabalhar com um conceito amplo, intentando abranger três
experiências comuns a praticamente todas as experiências místicas, seja ela
transcendente ou imanente. Por religião aqui entendemos uma experiência humana de intuição de um mistério (para uns,
transcendente, para outros, imanente) a partir da qual se desenvolve uma
experiência mística, uma teologia ou teoria dos fundamentos ou princípios
básicos dessa experiência, e um conjunto de regras de conduta ou uma ética e de
rituais de celebração. Noutras palavras, uma mística ou espiritualidade,
uma doutrina e uma ética e um conjunto de ritos celebrativos.
FUNDAMENTALISMO
RELIGIOSO
Cipriani
Gabriele
1. RESUMO E OBJETIVO
O objetivo [...] é aproximar-nos do fenômeno chamado
fundamentalismo buscando compreendê-lo. O termo, na linguagem comum e na
imprensa, refere-se a uma realidade religiosa ou política radical, considerada
uma ameaça para a sociedade contemporânea. É um conceito atribuído com muita
facilidade e de forma aproximativa a grupos e comportamentos radicais também
fora do mundo cristão, inclusive além do âmbito religioso em que nasceu.
Fala-se, frequentemente, de fundamentalismo islâmico, de fundamentalismo
judaico, de fundamentalismo hindu, mas fala-se também de fundamentalismo
político, econômico, do mercado.
Como fenômeno religioso, o fundamentalismo é objeto de estudo das
ciências da religião. Na história é apresentado como um movimento
político-religioso conhecido também por outros nomes como integrismo ou
radicalismo. Nos Estados Unidos, durante a Primeira Guerra Mundial, além de
indicar uma doutrina religiosa de caráter ortodoxo e conservador, identificou
também um movimento do cristianismo protestante que reafirmava a absoluta
inerrância da Bíblia em sua interpretação literal.
Na mesma época, no seio da Igreja Católica, fortaleceu-se uma
corrente que se opunha à tendência chamada modernista, acentuando a autoridade
do magistério romano como aparece na doutrina tradicional de Pio IX e Pio X.
Em uma sociedade mono-religiosa e monocultural, o espaço para uma
reflexão sobre o fundamentalismo é muito limitado. Com maior facilidade pode-se
falar de integrismo e conservadorismo. Em sociedades pluriculturais, como as contemporâneas,
que vivem situações de rápidas mudanças e de fragmentação cultural, as atitudes
fundamentalistas aparecem com maior evidência e constituem quase uma
necessidade para muitas pessoas e grupos que buscam salvaguardar sua
identidade. Devido à pluralidade de expressões e correntes diferentes é mais
apropriado falar em fundamentalismos, ao plural.
2. ORIGEM E
DESENVOLVIMENTO DE UM MOVIMENTO
O termo "fundamentalismo" nasceu em contexto religioso e
desde o início foi usado para designar um movimento cristão. Tanto o movimento
quanto o nome surgiram e se firmaram nos Estados Unidos, nas primeiras décadas
do século passado. A corrente fundamentalista, nascida no seio do cristianismo
protestante, reafirma a absoluta inerrância da Bíblia e sua autoridade suprema
para a fé e para a ética. Uma série de doze opúsculos, "The Fundamentals:
A testimony to the Truth" (1910-1915), expôs as doutrinas fundamentais
sobre as quais a fé tradicional não deve permitir dúvidas ou adaptações: a
inspiração literal da Escritura como palavra de Deus; a criação do mundo; a
divindade de Jesus Cristo; sua concepção virginal, seus milagres, sua morte
expiadora, sua ressurreição no corpo e sua volta futura; a realidade do pecado
e a salvação por fé. Uma espera ansiosa do retorno de Jesus liga o movimento
fundamentalista aos movimentos milenaristas do século XIX. Ele há de tirar os
fiéis do mundo decadente condenado ao domínio do anticristo, até sua definitiva
derrota e a instauração do reino milenário dos santos de Deus. Além disso, um
rígido código moral pessoal e familiar identifica esses segmentos.
A questão fundamentalista, porém, não se reduz à defesa das
verdades fundamentais do cristianismo, mas caracteriza-se por uma maneira
específica de considerá-las, ou seja, é defendida uma formulação particular dos
conteúdos da fé que não aceita nenhuma crítica. Não se trata, por exemplo,
somente de defender o ato criador de Deus, mas a criação do mundo em sete dias
como está relatada no primeiro capítulo de Gênesis, em oposição à teoria
darwinista da evolução. Ainda que a unidade desses opúsculos não seja orgânica,
sendo de diferentes autores, eles constituem uma plataforma comum contra a
teologia liberal e modernista e a interpretação histórico-crítica das
Escrituras.
O movimento fundamentalista não foi unitário nem conseguiu
unificar o mundo protestante. Tratou-se mais de tendências de certos setores.
Por isso, correntes fundamentalistas podem ser encontradas nas mais diversas
denominações protestantes, às vezes, com tal força e número que algumas
denominações podem ser consideradas fundamentalistas no seu conjunto. O marco
fundamentalista encontra-se em movimentos pentecostais e, a partir da década de
1980, é também uma característica das congregações independentes e de adeptos
de pregadores de televisão. Na expansão missionária das comunidades
fundamentalistas é relevante o apoio dado aos pastores enviados para a América
Latina.
3. UM MOVIMENTO
PARALELO: O INTEGRISMO CATÓLICO
No início do século XX, com raízes no século XIX, também na Igreja
Católica surgiu um movimento de reação ao modernismo que encontrava a simpatia
de estudiosos e de membros do clero. É uma corrente a que foi dado o nome de
integrismo. Seu perfil está em conformidade com o ambiente católico-romano, mas
assemelha-se ao fundamentalismo protestante pelo objetivo de luta contra o
modernismo e pela maneira de avaliar os fenômenos de mudança cultural e
religiosa e pelo tipo de relação a ser estabelecida entre Igreja e sociedade.
Enquanto, nos Estados Unidos, disputas lacerantes dividiram as maiores
denominações protestantes, na Igreja Católica o poder do papa Pio X e de alguns
cardeais contornaram a difusão das idéias modernistas com excomunhões e outras
medidas disciplinares.
A corrente integrista, liderada pelo próprio papa Pio X, foi
sustentada pela autoconsciência teológica da tradição católica em defesa da
Revelação divina, da custódia do patrimônio da fé e da interpretação autorizada
das Escrituras. Mas essa corrente foi levada também a um integralismo tendente
a impor o domínio eclesiástico na vida, a restauração de formas de pensamento e
de vida social proveniente da primeira metade do século XIX, de um
conservadorismo social e hierárquico que acreditava poder encontrar a verdade
apenas no âmbito que a Igreja havia construído para si desde o tempo do
iluminismo.
A intolerância e o radicalismo com que essa luta foi conduzida fez
não somente vítimas ilustres, mas chegou a atitudes de violência moral
reprovável. As drásticas intervenções do papa Pio X e a aprovação dada à
associação secreta chamada de Sodalitium Pianum ou de Sapiniére (pelo amigos e
inimigos) que assumiu a missão de colher informações reservadas sobre todos os
que fossem suspeitos, até cardeais ou superiores gerais de ordens religiosas, e
de transmiti-las diretamente ao papa, desaguaram numa repressão indiscriminada
e no fechamento hermético às correntes intelectuais não estritamente
confessionais e tradicionalistas. Uma pesada atmosfera de suspeita se abateu
sobre os católicos na segunda parte do pontificado de Pio X que fez levantar a
voz fortemente crítica de cardeais como Gasparri, Maffi, Schuster, Mercier. O
complexo de medidas restritivas tomadas naqueles anos, chegando a impedir
estudantes de teologia de ler qualquer periódico, ainda que fosse dos melhores,
constituíram um impedimento ao desenvolvimento dos estudos bíblicos e
históricos e levaram ao extremo o afastamento da Igreja Católica do mundo
moderno.
A corrente integrista foi viva e muito ativa durante e depois do
Concílio Vaticano II, encontrou sua expressão extremada no arcebispo Marcel
Lefebvre, que fundou sua própria Igreja, na sua opinião, fiel detentora da
Tradição cristã e da verdadeira fé católica. Continua ativa ainda hoje em
movimentos e organizações religiosas católicas que encontram apoio
incondicionado de segmentos da hierarquia.
4. A EXTENSÃO DO
CONCEITO DE FUNDAMENTALISMO
A atribuição do conceito de fundamentalismo a realidades tão
diferentes exige que se estude com atenção cada caso, especialmente porque a
conotação do termo é cada vez mais negativa. Já consideramos a extensão do
termo no mundo protestante e católico. Vamos considerar agora um exemplo fora
do mundo ocidental cristão. Hoje é praticamente inevitável não falar de
"fundamentalismo islâmico".
No Islã, o extremismo religioso se desenvolve de uma maneira toda
particular. As diferentes tradições muçulmanas, xiitas ou sunitas, estão de
acordo em reconhecer no Alcorão a "Palavra vinda do céu", cuja
autoridade ou inspiração não se pode questionar. Os ditos do Profeta também são
inquestionáveis. Mas há divergências sobre o tipo de tradição que se deve
privilegiar, aquela mais conciliadora ou aquela mais rígida e radical? Em época
recente, a penetração da cultura ocidental, imposta também através de políticas
direcionadas por interesses econômicos, tem elevado o nível de tensão e
provocado choques culturais e políticos violentos. A revolução iraniana de 1979
que tirou do trono o Xá Reza Pahlevi, uniu o povo na defesa da cultura e das
tradições islâmicas e na luta contra um poder explorador, levando à fundação da
República Islâmica. O Ayatollah Komeini, de volta ao Irã depois de 15 anos de
exílio, foi acolhido triunfalmente. Ele liderou um movimento que visava a
restauração das leis corânicas e a libertação do povo muçulmano do domínio
político, econômico e cultural do Ocidente. Conseguiu devolver o máximo poder,
também político, dos líderes religiosos. No breve período de uma década, a
revolução islâmica mostrou toda sua capacidade de unir forças em outros países
muçulmanos com governantes seculares: no Afeganistão com os talebans, na
Argélia com a Frente islâmica de salvação e o Grupo Islâmico Armado, no Egito
com a Irmandade muçulmana e a Jihjad Islâmica, no Líbano com o Hezbollah, na
Palestina com o Hamas.
O fortalecimento econômico dos estados produtores de petróleo deu
aos estados de religião muçulmana também um poder político e militar
estratégico nas relações internacionais. Além disso, esses países contam com a
força da tradição religiosa que no Ocidente encontra-se fragmentada e
debilitada. Sobre essa base, a Revolução islâmica implanta seu ideal político:
instaurar um regime teocrático que seja a tradução literal da charia, a luta
contra a penetração do poder e da cultura ocidental, representada especialmente
pelo Estado de Israel e pelos Estados Unidos. No que diz respeito aos costumes
exige-se o rompimento radical com tudo o que lhes pareça ocidental e a volta ao
uso do chador ou da burka e demais costumes.
Cada vez mais percebe-se e teme-se que esteja em curso um conflito
de civilizações. A opinião pública ocidental está incline a marcar com o
estigma de fundamentalista toda a gama do movimento político-religioso do mundo
muçulmano alimentando uma visão deformada e odiosa do Ocidente. O radicalismo
religioso e cultural e a política revolucionária islâmica de hoje almejam um
mundo em que todos obedeçam aos mesmos preceitos religiosos chegando a
alimentar a luta armada e o terrorismo para alcançar esse objetivo. O
fundamentalismo islâmico de hoje é hostil a uma certa ideia ideológica de
Ocidente, tão extremada que chega a desejar sua destruição.
A aplicação do termo fundamentalismo, como bem se compreende, é
transferência de um conceito originariamente circunstanciado para outras
realidades e outros conteúdos. O que pode justificar essa transferência é a
maneira de conduzir a defesa dos princípios religiosos ou culturais de uma
sociedade que apresenta traços semelhantes aos usados por outros grupos.
5. FUNDAMENTALISMO
COMO FENÔMENO RELIGIOSO
Toda religião, enraizada na sociedade humana, separa o grupo
humano que nela se reconhece daqueles que praticam outra fé. Estabelece um
território em que se definem e reforçam as identidades individuais e coletivas.
À medida que diferencia uma comunidade da outra, a religião pode gerar conflitos
ou servir de justificativa para confrontos violentos entre uma comunidade e
outra. Ainda que as religiões preguem a paz, em todas as religiões se encontram
pessoas ou grupos de crentes que vivem sua fé cultivando atitudes
fundamentalistas. O envolvimento das religiões em guerras justifica perguntar
se estas são fatores de guerra ou fatores de paz e se o fundamentalismo é ou
não intrínseco a toda profissão religiosa. A pergunta se abriga na mesma
estrutura institucional das religiões.
A crença num Deus absoluto e a total dedicação a ele da pessoa
religiosa acabam justificando o absolutismo da crença. A partir de uma
determinada formulação dos conteúdos de uma religião, tida como imutável,
assumem-se atitudes de defesa e de luta contra toda e qualquer tentativa de
reformulação, contra e qualquer mudança de comportamentos não consagrados pela
tradição. O próprio serviço da verdade pode levar os líderes religiosos a
atitudes autoritárias e violentas com a finalidade de evitar o relativismo, o
sincretismo, o indiferentismo.
A recusa de distinguir entre conteúdos e suas formulações, a
identificação do sentimento de total adesão de fé ao absoluto de Deus e a
acolhida da sua auto-revelacão levam muitos crentes a assumir posturas de
rígida defesa de sua profissão religiosa e comportamentos intolerantes.. Chegam
a ponto de não admitir a possibilidade de outras identidades, negam o direito a
pensamentos e a atitudes diferentes.
No interior da comunidade de fé, eles tendem a impor sua visão da
tradição como a única ortodoxa, usando todos os meios, mas particularmente o
poder religioso. Pode-se verificar nesses segmentos uma busca constante dos
espaços de poder, uma infiltração nos postos-chave de condução das comunidades
religiosas. Através da emanação de normas categóricas e invioláveis, com penas
anexas para os transgressores, da formação de grupos de controle e de denúncia,
instauram um verdadeiro clima de regime.
Na sociedade sua presença é também caracterizada por formas de
poder. São defensores de atitudes moralistas muito rígidas, de valores ligados
à cultura tradicional, quer religiosa como social. Usam publicamente costumes
que ostentam sua identidade religiosa. Divulgam suas ideias de forma
particularmente polêmica contra outros crentes ainda que pertençam ao mesmo
credo religioso. Na política buscam entendimentos e cumplicidade com as forças
conservadoras em troca da defesa e do apoio político e legal para a conservação
de seu poder religioso.
Fundamentalismo e ameaça à paz parecem, cada vez mais, dois termos
inseparáveis no mundo contemporâneo. Fundamentalismo e uma maneira equivocada
de viver a fé também parecem companheiros inseparáveis de viagem. A expressão
do escritor José Saramago em comentário ao ato terrorista de 11 de setembro de
2001 "O problema é Deus" deve servir de alerta para todos os crentes.
Uma coisa é a adesão total e incondicionada a Deus, outra coisa é usar a
religião em benefício de pessoas ou de grupos de poder.
Movimentos pacifistas procuram alertar sobre os riscos de atitudes
fundamentalistas e contribuir para a criação de culturas de paz. No mundo
religioso afirma-se cada vez mais um pluralismo de fato e de direito. O
ecumenismo e o diálogo inter-religioso são apontados como caminhos
irreversíveis para a reconciliação e a paz religiosa.
6. O FUNDAMENTALISMO
NO MUNDO CONTEMPORÂNEO
A pluralidade religiosa e cultural está inscrita na história da
humanidade. Se no passado alguns impérios souberam criar condições de
convivência entre diferentes grupos humanos, os encontros entre representantes
de culturas diferentes eram raros e havia territórios mais definidos para cada
cultura e cada religião, também no passado as conquistas religiosas foram
acompanhadas por violências e guerras.
Em nossas sociedades a situação mudou totalmente. A pluralidade
religiosa não permite mais a definição segura dos territórios onde praticar em
liberdade o próprio credo religioso. Crentes diferentes convivem no mesmo
espaço humano. Um clima de insegurança se instaura nos indivíduos e nos grupos.
A interdependência global dos povos e das sociedades e a
importância do fenômeno religioso no mundo atual dão relevância a mecanismos de
intolerância e fanatismo de matriz religiosa, que complementam os outros
fatores de conflito.
Entre esses mecanismos encontra-se um elemento importante: dois
terços da humanidade professam religiões de origem estrangeira geralmente
difundidas em tempos de expansão colonial. A revolta anti-colonial marca hoje
significativamente as reações de povos e etnias e envolve os aspectos
religiosos da colonização.
A globalização comercial, a migração de grandes massas humanas, a
rapidez dos transportes e da comunicação, os intercâmbios culturais têm levado
a uma fragmentação cultural e religiosa dentro de comunidades tradicionalmente
unidas pela hegemonia de uma cultura ou de uma religião.
A possibilidade de perder a segurança enraizada em uma cultura e
em uma religião é muito grande e as reações fundamentalistas frequentes. Se a
vocação universalista no passado levou a visitas discretas ou agressivas de missionários
a outros territórios, hoje todos os crentes em qualquer lugar devem vigiar as
próprias atitudes de domínio espiritual. A conquista de espaços de presença
pode alimentar a competição e acirrar polêmicas e chegar aos excessos da
intolerância e do fanatismo.
A necessidade de não perder uma identidade pacientemente
construída faz considerar uma ameaça a variedade de experiências possíveis em
uma sociedade em mudança como a nossa. A busca de espaços de segurança e
atitudes de defesa, por parte de grupos que se consideram agredidos pelo
proselitismo de outros, desencadeia reações agressivas e processos de
autoritarismo nas Instituições religiosas.
Volta também com força a tendência das religiões a ocupar os
campos próprios da política. Desencadeiam-se processos que transferem a
competição religiosa para o âmbito da política partidária e a envolvem em
conflitos de interesse mais amplo, com a consequente ameaça para a paz social.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Situações diversas têm levado no passado e levam ainda hoje
pessoas e grupos humanos a uma maneira semelhante de enfrentar situações de
conflito religioso, político ou social. A diversidade dos conteúdos exige
estudos diferenciados de cada caso, mas atitudes semelhantes levam a
identificar métodos e comportamentos como fundamentalistas.
Na situação internacional atual às correntes fundamentalistas
opõem-se os métodos políticos da negociação e ao fundamentalismo religioso é
proposto o caminho do ecumenismo e do diálogo inter-religioso, inclusive como
novos paradigmas de ação missionária para religiões que entendem seu credo como
universal.
A missão cristã é desafiada a rever os paradigmas construídos em
época colonial e aprofundar não somente uma espiritualidade de diálogo, mas
construir um paradigma novo de missão que seja ao mesmo tempo ecumênico,
inter-religioso e inter-cultural.
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
8.1. Documentos eclesiais
- CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Decreto Unitatis Redintegratio.
- CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Decreto Nostra Aetate.
- JOÃO PAULO II. Encíclica Redemptoris Missio, São Paulo:
Paulinas,1990.
- PONTIFÍCIO CONSELHO PARA O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO E CONGREGAÇÃO
PARA A
EVANGELIZAÇÃO DOS POVOS. Diálogo e anúncio, São Paulo: Paulinas,
1996.
8.2. Bibliografia geral
- TAMAYO, Juan José. Fundamentalismos y diálogo entre religiones.
Madrid: Trotta,
2004.
7
- TEIXEIRA Faustino (org.). Diálogo de pássaros: nos caminhos do
diálogo inter-religioso,
São Paulo: Paulinas, 1993.
- TEIXEIRA, Faustino. O diálogo em tempos de fundamentalismo
religioso. Convergência,
v. 37, n. 356, (2003) 495-506.
- V.V.A.A. Fundamentalismo, Vida Pastoral XXXV/176, (Maio-Junho
1994).
Disponível em: http://www.missiologia.org.br/cms/ckfinder/userfiles/files/55fundamentalismoreligioso.pdf: acesso: 27/11/2011.