segunda-feira, 8 de julho de 2013

Os filósofos e os protestos de junho



(O texto a seguir é do filósofo Paulo Ghiraldelli Jr., no qual ele faz uma análise da leitura feita por alguns filósofos brasileiros acerca dos protestos que ocorreram no Brasil recentemente)

Filósofos de esquerda como Marilena Chauí e Vladimir Safatle divergiram em suas análises do movimento de protestos. Pejorativamente, Chauí falou da “dimensão mágica” dos protestos, algo que derivaria do não domínio técnico e econômico da Internet por parte de seus usuários, levando em conta que a Internet, e em particular o Facebook, teriam sido o ponto de origem dos protestos. (1) Safatle, por sua vez, comemorou o que ele supôs que estivesse na ordem do dia do movimento de protestos, a saber, a democracia representativa. Apostou então na criatividade dos protestos, que segundo ele poderiam propor novas formas de organização ao se livrarem da representação. (2)
Não pude endossar a tese da professora Marilena, claro, porque não vejo como afirmar que há algum impedimento em se combinar protestos pela Internet só porque não se é o seu dono. Argumentei que, se o que ela disse tivesse base, também o livro não seria um veiculo de comunicação nosso, dos filósofos que ajudaram revoluções com suas publicações. Afinal, não somos donos das editoras! (3)
Também não endossei a tese de Safatle, uma vez que o movimento de protestos questionou a representação atual, não o princípio da representatividade na democracia representativa. Os manifestantes disseram claramente que estavam cansados de partidos políticos e coisas do gênero, mas poucos deles afirmaram que nunca mais votariam em alguém. Não disseram, também, que por causa do movimento ter uma certa horizontalidade e uma ojeriza às vanguardas, a forma de governo exclusivamente “das ruas” seria a melhor maneira de administrar o Brasil. Safatle se empolgou. Aliás, se estivesse certo, aí sim o movimento teria de parar o protesto e começar a pensar em como criar uma democracia de base direta no Brasil – coisa que eu duvido que alguém saiba como fazer para além dos mecanismos mistos que conhecemos, e que até foram propostos por Joaquim Barbosa. (4)
Os protestos chegaram tardiamente entre os filósofos conservadores. Menos afoitos que a esquerda, talvez eles tenham esperado as coisas se acalmarem para dar seus palpites. Denis Rosenfield e Luiz Felipe Pondé, que até já chegaram a escrever livro juntos, com o sugestivo título “Por que viramos à direita” ou algo parecido, tomaram caminhos diferentes. Rosenfield escreveu entusiasmado com tudo que ocorreu. Praticamente deixou a filosofia de lado para comemorar o antipetismo que enxergou no movimento. Esse antipetismo foi, na verdade, uma parte do antipartidarismo em geral que esteve de fato presente nos protestos. Rosenfield notou isso, mas tomou tal coisa como não tão importante diante da possibilidade de vibrar diante da visão de bandeiras do PT queimadas pelos manifestantes.
Diferentemente, Pondé se aproximou da análise de Safatle, ou melhor, praticamente endossou a análise do seu colega de Folha de S. Paulo. Também ele viu no movimento alguma possibilidade de fazer surgir seriamente uma crise de legitimidade da democracia representativa. Todavia, enquanto Safatle olhou para tal coisa com esperança alegre, Pondé, não de todo correto, assimilou a perda de legitimidade da representatividade como necessariamente um caminho de violência, e então fez as advertências de praxe para um conservador moderado.
Nesse caminho, Pondé trouxe Hobbes, Rousseau e Tocqueville para a sua exposição. (5) Deu ao primeiro um caráter muito mais totalitário do que o verdadeiro, e expôs Rousseau como que possuindo um caráter unicamente revolucionário. Tudo isso para abraçar Tocqueville. Nesse caso, criou aquilo que, não raro, eu denuncio em alguns artigos do Pondé: a caricatura. Nem sempre ele bate no adversário sem antes torná-lo já derrotado ao mostra-lo desenhado antes pelo chargista que por um retratista cuidadoso. Às vezes isso até ajuda. Mas, na maioria das vezes, atrapalha sua própria argumentação.
Hobbes diz claramente em sua teoria que o governado, mesmo tendo cedido ao contrato e conferido direitos absolutos ao Príncipe, se este falta com seu dever de chefe de estado e de seu protetor público, há legitimidade na rebeldia do súdito, aliás, surge aí até o dever de rebelião. Pondé nada fala sobre isso.
Rousseau não possui apenas uma via de leitura. Quando ficamos atentos a Kant, vemos que ele lê Rousseau como um reformista que quer mudanças pela via da educação. Quando lemos Engels, vemos então que Rousseau pode muito bem ser entendido como alguém que também toma a via revolucionária como caminho de mudanças. Isso não é nenhuma novidade. Vários intérpretes de Rousseau notaram isso que noto aqui.  Pondé também nada fala sobre isso. Aliás, já se tornou um lugar comum em seus artigos ele querer condenar o marxismo revolucionário por meio da condenação de Rousseau, o que, a meu ver, é um entendimento excessivamente unilateral do genebrino e, não raro, uma via assumida também pela esquerda que Pondé execra.
Até aqui, esse é o quadro das manifestações de alguns filósofos que foram à mídia para opinar sobre os protestos. Outros textos, no entanto, foram menos ideológicos. Artigo bastante analítico veio do Rio de Janeiro, pelas mãos de Luiz Eduardo Soares. Mas o leitor que não tiver paciência pode pegar a ideia central nas entrevistas desse pensador com o qual compartilho um passado semelhante quanto ao vínculo com Richard Rorty. (6) Não caberia falar de Soares aqui, mas sugiro ao leitor que o procure.
Da minha parte, não fui apenas um observador, mas um participante nos protestos, e diferentemente dos colegas citados acima, fiz mais de um artigo sobre o assunto, notando filosoficamente que os protestos poderiam ser chamados de “a revolução do indivíduo”. (7)
Por enquanto, salvo alguns outros colegas que, talvez, eu possa abordar em outros textos, este é o mapa que faço a respeito das falas nossas, de filósofos, sobre o movimento que mudou a agenda política brasileira de um modo bem diferente de outras mudanças passadas.

© 2013 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ

2. Sem partido (Safatle)
7. A revolução do indivíduo (Ghiraldelli)
Disponível em: http://ghiraldelli.pro.br/os-filosofos-e-os-protestos-de-junho/; acesso: 07/07/2013.

SABER POPULAR E SABEDORIA FILOSÓFICA[1]



Epitácio Rodrigues da Silva
 

“O problema do saber popular não é se ele é verdadeiro ou falso, mas a ausência de uma fundamentação mais rigorosa e consistente. As pessoas não buscam saber o porquê dessas noções, apenas as reproduzem, porque é assim que pensa o grupo social no qual estão inseridas.”


No uso cotidiano e vulgar do termo filosofia podemos perceber uma certa vinculação com a ideia de sabedoria, porém com uma ênfase mais pragmática. Quando ouvimos, por exemplo, “eu tenho uma filosofia de vida”, o termo filosofia aqui se refere ao conjunto de princípios práticos que uma ou mais pessoas se apoiam para conduzir ou nortear a sua própria vida. Na maioria das vezes, esses princípios possuem um teor ético e nascem da observação da própria vida, de tal forma que a expressão filosofia de vida denota mais uma sabedoria de vida traduzida em preceitos, provérbios ou adágios curtos, conservados pela tradição popular e nem sempre refletido adequadamente. Não por nada, muita gente pensa que filosofar é criar frases bonitas ou provérbios de efeito para divulgar aos outros. Isso é, com toda certeza, uma noção equivocada e muito distante do que se deve entender por Filosofia. Mas então qual a diferença entre saber popular e filosofia?

O senso comum e o saber popular
O ser humano desde que tomou conhecimento de si mesmo como ser no mundo, sente a necessidade de compreender a realidade que o cerca e para os fatos que fazem parte da vida. Assim, ao longo da história humana cada sociedade constrói um conjunto de saberes que expressam uma compreensão da realidade, formada a partir de uma gama de opiniões, hábitos e formas de pensamentos dos quais os indivíduos se servem no dia-a-dia, para entender o mundo circundante e orientar a sua própria vida.
Essa forma de compreensão da realidade é construída de maneira espontânea, assistemática e fragmentária, tendo como suporte as vivências cotidianas e a necessidade premente que temos de apresentar respostas às questões mais imediatas.
Além de espontâneo, assistemático e fragmentário, o saber popular possui um caráter anônimo, pois não apresenta explicações assinadas a quem se pode atribuir a autoria. Trata-se de um corpo de saberes gestado e transmitido, quase que por osmose, às diversas camadas sociais e gerações diferentes, criando um verdadeiro patrimônio cognitivo, valorativo e cultural do senso comum e que constitui a sabedoria popular de um povo. Porém, apesar do seu inquestionável valor existencial para os indivíduos que fazem parte dessa dada sociedade, trata-se de um saber relativamente dogmático, superficial, imediatista e pragmático. Por isso, não há nesse corpo de conhecimento do senso comum a garantia de que ele apresente suficiente grau de bom senso, devendo, portanto, ser submetido a uma análise mais criteriosa da sua origem, da sua história e do seu fundamento.

Da sabedoria popular à sabedoria filosófica
Entre o saber popular e a Filosofia existe uma relação de desenvolvimento e ruptura. De fato, a reflexão filosófica, enquanto forma de saber sistemático, rigoroso e radical, tem como ponto de partida algumas questões existenciais percebidas numa experiência efêmera, mas elevada às suas bases fundamentais. Nesse sentido, alguns problemas antropológicos do saber popular e da sapiência filosófica se identificam, porém há uma ruptura na busca de entendimento e no processo de construção de respostas a esses mesmos problemas.
O processo de filosofar exige como condição primeira a adoção consciente e sistemática de uma atitude de suspeição ou desconfiança em relação aos conhecimentos, fatos, coisas e valores com os quais nos deparamos cotidianamente. O que se crer, pensa, ouve e vê não podem ser tomados como autoevidentes e inquestionáveis, mas colocados a uma certa distância pedagógica. Esse estranhamento ou desconfiança em relação ao mundo a nossa volta é condição indispensável à prática da Filosofia. De fato, é impossível adentrar no universo da Filosofia sem essa ruptura com os conhecimentos prévios, com os pré-conceitos e com os pré-juízos. Pois o mundo humano é uma construção simbólica feita por nós mesmos, graças à capacidade que temos de atribuir significações às coisas e expressar através da linguagem essas significações. Porém, com o passar do tempo nós mesmos começamos a aceitar essa organização ou criação simbólica da realidade como natural. Daí a importância de uma pedagógica postura de afastamento/estranhamento ou desconfiança em relação ao mundo de conceitos, ideias e imagens mentais que carregamos como verdadeiras e evidentes. Sem isso não é possível fazer uma desconstrução adequada da sua visão de mundo. Ou seja, se eu nunca desconfiar do que vejo, do que penso, do que digo, do que faço não estarei em condições de examiná-lo de fato. Mas, a desconfiança deve ceder lugar à análise crítica.
Vale lembrar que crítica em Filosofia é exame racional, sistemático e rigoroso do conhecimento que temos da realidade. O caminho mais comum para fazer uma análise crítica é a indagação problematizadora. Na nossa pressa, apressadamente perguntamos e apressadamente respondemos.
Mas perguntar é apenas o princípio da busca, faz-se necessário que ela seja transformada em investigação. Uma busca sistemática e com direção orientada a uma resposta. O perguntador, para tornar-se um pensador, precisa comprometer-se com a pergunta, tornando-se um investigador. Se em cada pergunta já está subjacente um direcionamento da resposta, sem o compromisso da busca não há filosofia. Pois, não é a pergunta, propriamente dita, a genitora da Filosofia, visto que perguntar é, como dissemos, próprio do ser humano. Mas, será o tipo de pergunta e o compromisso rigoroso na busca da resposta. É a relação pergunta - com todos os elementos acima elucidados - e a busca ou escuta da resposta, que revela o caráter dialógico da Filosofia.
Ou seja, a filosofia no seu aspecto global e originário, nasce da necessidade humana de encontrar ou construir o sentido da sua própria existência, para além das experiências imediatas e pragmáticas do dia-a-dia. Ela tem, portanto, a dimensão de busca às respostas mais teleológicas para o que somos, o que fazemos, o que pensamos, o que dizemos e o que esperamos. Isso, por si só, explica e justifica a sua razão de ser. Mas isso não significa que quem não filosofa não tem uma vida com sentido? Afirmar tal coisa seria um contracenso. O que se explicita aqui é que a Filosofia nasce de um esforço para fundamentar a nossa própria existência sobre uma base conceitual quando os discursos míticos, as explicações religiosas e o saber do senso comum se mostram insatisfatórios aos espíritos mais aguçados e ávidos de uma fundamentação coerente, consistente e racional da sua própria razão de ser-no-mundo.

Questões para debate:

1. Qual a importância do saber popular?
2. Como o saber popular se relaciona com a sabedoria filosófica?
3. O exercício da reflexão filosófica anula, de forma definitiva, a influência do saber popular na vida de quem filosofa?


[1] Artigo publicado na revista Mundo Jovem, ano 51, nº 438, julho/2013, p. 21.

Ensaio SOBRE A OPINIÃO

“Ah, como uma cabeça banal se parece com outra! Elas realmente foram todas moldadas na mesma forma! A cada uma delas ocorre a mesma ide...