quarta-feira, 25 de novembro de 2015

POR UMA ESTÉTICA MAIS PLURIVERSAL





 Por Epitácio Rodrigues
Professor de Filosofia e escritor

Um dos pilares de sustentação do racismo é a estética. A crença na superioridade de um suposto grupo étnico sobre outro não está ancorada somente no discurso de maior capacidade racional ou melhor qualidade genética, mas também sobre os padrões de beleza assumidos pelo grupo. Como o racismo não tem uma base consistente que lhe dê sustentação, a estética acaba ganhando muito peso, na medida em que é algo que mais facilmente pode ser disseminado no senso comum. Noutras palavras, para justificar uma suposta superioridade racional e/ou genética faz-se necessário um discurso “maquiado de científico” complexamente elaborado e nem sempre acessível a todos. Já os parâmetros de beleza adotados são prontamente assimilados pelo senso comum e facilmente reforçados pelos meios de comunicação de massa.

Essa consideração é fundamental, sobretudo quando se leva em conta o fato de o negro brasileiro está numa configuração estética na qual ele não se sente contemplado. Não por nada os cabelos, o nariz, os lábios e a cor da pele são partes do corpo muito visadas por quem, velada ou abertamente, procura ofender ou humilhar uma pessoa simplesmente pelo fato de ser negra. Essa é uma das razões pelas quais, no Brasil, muitos negros não querem ser negros. É verdade que nos últimos anos muita gente tem se declarado oficialmente negro ou pardo. Mas ao que parece, a motivação está ligada aos possíveis benefícios advindos de políticas públicas de ações afirmativas voltadas a eles. Não sou contra as políticas de ações afirmativas destinadas à população negra, pelo contrário, acho que elas estão chegando muito atrasadas. O que quero chamar a atenção é para a confusão gerada entre declarar-se oficialmente “preto” ou “pardo” e pensar a si mesma como pessoa negra. São duas posturas nem sempre equivalentes. Quando perguntamos a alguém que se tenha declarado “preto”, o que significa ser negro hoje, ele nem sempre saberá como responder.

As razões para esse fenômeno decorrem de um complexo processo de diluição da identidade negra num leque cromático que gerou para o nosso léxico vários termos e conceitos, que mais confundem do que auxiliam na construção de uma identidade étnica. Termos como “cabra”, “homem de cor”, “mulato escuro”, “mulato claro”, “moreno escuro”, “moreno claro”, “pardo” e “afrodescendente”; todos são formas veladas e sutis de fuga de uma identidade negra, profundamente associada à questões fenotípicas e cromáticas. Essa fuga da negritude como identidade pessoal encontra sua razão de ser numa consciência, às vezes clara, às vezes obscura, de que ser negro não parece ser uma coisa boa. Assim, uso de produtos químicos para alisar os cabelos, cirurgias plásticas para afinar ou “corrigir” a espessura dos lábios ou o formato de nariz, para quem tem um certo poder aquisitivo, são procedimentos aos quais se costuma recorrer para conformar-se ao padrão estético estabelecido.

Frente a esse quadro, pode-se perguntar o que significa falar consciência negra nas escolas? A quem se destina? Qual o papel da educação no necessário processo de conscientização da sociedade para a aceitação e o convívio com outros padrões estéticos. Aqui acredito que a Filosofia (mas não só ela) pode oferecer um valioso contributo no processo de construção ou resgate de uma beleza numa perspectiva do negro africano, que, em última instância, não se destina somente nós, os negros brasileiros, mas a todos os indivíduos desta sociedade. A contribuição seria sobretudo no processo de ressignificação do nosso modo de pensar estético. Isso porque somos herdeiros de um padrão e de um conjunto de valores estéticos que se apresentam como hegemônicos e unívocos, frente aos quais o negro não só não se reconhece neles, como também não é reconhecido pelos não-negros. Quando falo em Estética refiro-me aos padrões e valores estéticos, mas também ao sentimento que eles suscitam nos indivíduos. Assim, se “o belo é o que agrada”, como afirmara Kant, o feio, em contrapartida, será o que causa repulsa e aversão. E numa sociedade onde as características físicas e fenotípicas de uma pessoa não se coadunam ao que se convencionou ser o belo, é praticamente impossível que ela não sinta em si mesma a “síndrome do patinho feio”.

A situação problema é a seguinte: como num país tão plural, ainda predomine uma imagem de beleza tão unívoca? É fato que a estética brasileira deve se esforçar para ser mais pluriversal, rompendo com esse monismo estético e partir em busca de uma compreensão da estética na qual outros padrões também sejam conhecidos, entendidos e considerados. Penso que as palavras do filósofo e pedagogo, Paulo Freire, ganham força de um imperativo, quando afirma que “a necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode ou não deve ser feita a distância de uma rigorosa formação ética sempre ao lado da estética” (Pedagogia da Autonomia, 1996, p. 32). Assim, temos que sair da ingênua compreensão de que a questão da beleza é algo meramente subjetivo e individual, depende de sujeito para sujeito; como também romper com a equivocada ideia de que a beleza é uma coisa natural. Na verdade, padrões de beleza são construções culturais e coletivas. Apresentam variações de grupo para grupo e linhas de semelhança no interior de cada um deles a ponto de se poder falar em padrões de beleza.

Portanto, penso que alguns passos ainda precisam ser percorridos. O primeiro deles é o conhecimento do que é a Estética Africana, algo que vamos aprender com aqueles dos quais herdamos características fenotípicas, mas que tiveram muitos elementos da sua cultura suplantada pela tradição cultural europeia. É preciso ir ao lugar epistemológico no qual encontramos as nossas origens. Outro passo, em parte consequência do primeiro, mas também de uma postura de reivindicação sócio-politica, é ampliar os nossos padrões e valores estéticos, saindo desse monismo rumo a uma compreensão e uma vivência mais pluriversal da estética.

terça-feira, 21 de abril de 2015

FILOSOFIA DA ARTE OU ESTÉTICA: O QUE É ISTO?


Epitácio Rodrigues

Você já parou para se perguntar, por exemplo: “o que torna um objeto uma obra de arte?” ou “qual a relação entre forma e conteúdo num a obra de arte?”; ou se “uma obra de arte nos põe em contato com a mente do artista?”; “por que atribuímos tanto valor à obra de arte?”; “O que explica o caráter especial da experiência estética?”; ou se “dizer que um objeto é belo relata um fato a respeito do objeto?”; “ou expressa um sentimento do sujeito?”; “O que é o belo?”[1]
Essas são algumas das inúmeras questões levantadas por um ramo específico da Filosofia chamado de Estética ou Filosofia da Arte, que se dedica ao estudo da Arte, da experiência estética e da relação da arte com a sociedade, com a política e com a ética etc. Trata-se de um ramo novo, desenvolvido a partir de meados do século XVIII. Isso não se significa que temáticas ligadas à arte não tenham sido abordadas por nenhum filósofo antes desse período, pois as questões referentes à arte são tão antigas quanto a própria origem da filosofia. Apenas se considera que a partir do referido século os problemas filosóficos relativos a esse tema passaram a ser analisados mais sistematicamente, dando início a uma disciplina nova no interior da tradição filosófica.
Nesta aula, a nossa intenção é apresentar o conceito de Estética e sumariar os primórdios dessa parte da filosofia. Seguiremos os seguintes passos: inicialmente apresentaremos a origem da palavra e o contexto no qual ela foi inserida na investigação filosófica; depois, colocaremos para o aluno dois conceitos de Estética extraídos de livros didáticos propostos para o Ensino Médio e explicitaremos os elementos que compõem essa definição.
Comecemos então pela palavra Estética. Sobre ela é necessário fazer duas observações. A primeira é que seu uso não é exclusivo da filosófica. Na arte e no dia-a-dia, usa-se esse termo para se referir à beleza. A segunda observação, que esclarece a primeira, é a seguinte: estética é uma forma aportuguesada do termo grego aísthesis, que significa “conhecimento sensorial ou efetivado pelos sentidos”, “experiência”, “sensibilidade”. Como explica Rufinoni, aísthesis, em grego, é uma palavra que remete aos sentidos, ao que conhecemos por meio dos sentidos, os cinco sentidos, ou seja, sensibilidade em uma acepção bastante restrita, referente àquilo que nos chega a partir do corpo, das sensações”.[2] Noutras palavras, inicialmente esse termo não teria nenhuma ligação com a Filosofia, já que esta lida com o conhecimento racional, enquanto a estética valoriza o conhecimento sensitivo.
Será graças ao filósofo alemão, Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762), que a palavra Estética passará a fazer parte do vocabulário filosófico, sobretudo a partir de 1750. De fato, na história da Filosofia costuma-se atribuir a ele a criação da Estética moderna[3], enriquecendo assim a filosofia como essa nova área do conhecimento, uma vez que foi o primeiro a ministrar um curso de estética numa abordagem filosófica, em 1742; mas, sobretudo por se dedicar ao estudo filosófico da formação do gosto e os fenômenos ligados à compreensão da experiência artística, na obra intitulada exatamente Aesthetica e publicada em 1750.[4] Hegel apresenta em poucas palavras, o processo de consolidação desse termo na literatura filosófica europeia:

Foi Baumgarten quem denominou de estética a ciência das sensações, está teoria do belo. Só aos alemães esta palavra é familiar. Os franceses dizem théorie des arts ou dês belles lettres. Os ingleses incluem-na na critic. Os principais críticos de Home gozaram de grande voga no tempo em que este autor publicou a sua obra. Na verdade, o termo estética não é o que mais propriamente convém. Já se propuseram outras denominações – “teoria das belas ciências”, “das belas-artes” – que não foram aceites e com razão. Empregou-se também o termo “calística”, mas do que se trata é, não do belo em geral, mas do belo como criação da arte. Conservemos, pois, o termo Estética, não porque o nome nos importe pouco, mas porque este termo adquiriu direito de cidadania na linguagem corrente, o que é já um argumento em favor da sua conservação (HEGEL, Estética, 1999, p 34).

Agora que já sabemos que existe uma parte da filosofia que se dedica ao estudo da arte, como você responderia se lhe perguntassem o que, filosoficamente falando, se deve entender minimamente por Estética? Para auxiliar nessa tarefa, vamos apresentar dois conceitos de estética e, em seguida, analisar os seus elementos constitutivos. O primeiro extraído do livro Filosofando, no qual as autoras afirmam: “sob o nome estética enquadramos um ramo da filosofia que estuda racionalmente os valores propostos pelas obras de arte e o sentimento que elas suscitam nos seres humanos”[5]. A outra, extraída do livro Um outro olhar, no qual Sonia Maria Ribeiro de Souza assim se posiciona:

A estética é a disciplina filosófica que se ocupa com a investigação racional do belo e com a análise dos sentimentos por ele provocados. À medida que a arte passou a ser entendida como canal de expressão da beleza e do belo, também passou a ser alvo das reflexões estéticas. Dessa maneira, o belo, a arte, as emoções estéticas, os sentimentos estéticos e os juízos estéticos são temas presentes nas discussões e especulações da área da filosofia denominada estética (SOUZA, 1995, p. 210).

Analisando as duas definições, podemos perceber que ambas estão de acordo sob alguns pontos: 1) a estética é uma disciplina ou ramo da filosofia; 2) que seu estudo ou análise é de caráter racional; 3) que o objeto de estudo é a arte, seus valores e os sentimentos que ela provoca nos sujeitos. Com relação ao conceito de Souza, ao afirmar explicitamente que a estética “se ocupa com a investigação racional do belo”, ainda que acrescente mais abaixo: “o belo, a arte, as emoções estéticas, os sentimentos estéticos e os juízos estéticos”, pode dar e entender que é o belo e não a arte o objeto de estudo dessa disciplina. Nesse caso, faz-se oportuno lembrar a advertência de Maria José Justino, segundo a qual, “o belo pode ser um dos atributos da arte, mas não é o único, tampouco o mais importante. O feio também pode ser arte”.[6] Mas isso é assunto será desenvolvido na próxima aula.
Por agora, podemos dizer, com base no caminho percorrido até aqui que, frente à questão Filosofia da arte ou estética: o que é isto?, o aluno estará em condições de dizer minimamente que se trata de um ramo da filosofia que estuda racionalmente o complexo universo da arte e os sentimentos e valores que ela provoca e evoca nos seres humanos que a produz e naqueles que a apreciam.

Referencia bibliográfica:
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. & MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando. 5ªed. São Paulo: Moderna, 2013.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Estética: a idéia e o ideial. In: Hegel. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova cultural, 1999.
GARDNER, Sebastian. Estética. In: Compêndio de Filosofia. (org. BUNNIN, Nicholas e JAMES, E.P. Tsui.).  São Paulo: Loyola, 2002.
JAPIASSÚ, Hilton & MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 4ª ed. São Paulo: Jorge Zahar editor, 2006.
JUSTINO, Maria José. A admirável complexidade da arte. In: Para Filosofar (Vários autores). São Paulo: Scipione, 2007, pp. 265-325.
RUFINONI, Priscila Rossinetti. Filosofia da arte e estética: um caminho e muitos desvios. In: FILOSOFIA: ENSINO MÉDIO. Coord. Gabrielle Cornelli, Marcelo Carvalho e Márcio Danelon. Brasília: MEC, Sec. Educ. Básica, 2010 (Col. Explorando o Ensino; vol. 14).
SOUZA, Sonia Maria Ribeiro. Um outro olhar. São Paulo: Editora FTD, 1995.




[1] Essas são algumas perguntas apresentadas por GARDNER, Sebastian. Cf. Estética: in: Compêndio de Filosofia, 2002, p.230
[2] RUFINONI, P.R. 2010, p. 118.
[3] JAPIASSÚ & MARCONDES, 2006, p. 27.
[4] Cf. SOUZA, 1995, p. 210.
[5] ARANHA & PIRES MARTINS, 2013, p. 336.
[6] JUSTINO, M. J. 2007, p. 271.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

POLÍTICA, POLITICAGEM, CIÊNCIA POLÍTICA E FILOSOFIA POLÍTICA



Epitácio Rodrigues

O que é política? Qual a diferença entre política, politicagem, Ciência Política e Filosofia Política? Nesta aula vamos abordar essas diferenças para deixar mais claro em que consiste a política e seus principais elementos, mas, sobretudo, para elucidar melhor a especificidade da reflexão filosófica sobre a política.
Quando pesquisamos nos dicionários de língua portuguesa, percebemos que a palavra política aparece como sinônimo de “arte ou ciência de governar” ou “aplicação desta arte nos negócios internos da nação (política interna) ou nos negócios externos (política externa)” e ainda como “prática ou profissão de conduzir negócios políticos.” A lexicografia sugere que se trata de um conjunto de atividades voltadas à administração dos negócios públicos, circunscrito num determinado espaço e as relações internas e externas dessas atividades e também seus atores mais imediatos. O filósofo francês, André Comte-Sponville inúmeras vezes define a política como uma gestão não guerreira de conflitos, alianças e relações de poder no âmbito coletivo, de toda uma sociedade.[1] São, portanto, elementos da definição de política: a noção de governo e gestão; o poder como elemento de exercício de gestão; e o caráter coletivo dessa atuação.
Numa sociedade democrática, como é o caso da nossa, chamamos de políticos, em sentido estrito, aqueles que se ocupam mais diretamente das atividades relacionadas à administração dos negócios públicos. Porém, em sentido mais amplo, todos nós somos considerados atores políticos, na medida em que compete também a nós eleger, acompanhar e exigir que os recursos públicos, os projetos de leis sejam voltados ao atendimento das necessidades de toda a coletividade.
Por isso, quando o poder de administrar os negócios públicos é utilizado para beneficiar apenas aquele que o detém ou seus pares, não se trata mais de política, mas de politicagem. A politicagem é a corrupção da finalidade política, na medida em que a administração dos negócios ou bens públicos não está mais voltada ao benefício da coletividade e sim à satisfação de interesses particulares e pessoais dos gestores.
Como ficou explicitado acima, a política é uma atividade ou conjuntos de ações. Isso significa que é da sua natureza ter um caráter acentuadamente concreto e prático. Porém, existem saberes especializados que se ocupam com o estudo da atividade política, dentre eles a Ciência Política e a Filosofia Política. A Ciência Política é uma das Ciências Sociais que tem como objeto de estudo o conjunto de ações que compõem o universo da política e seus atores. São alguns dos temas investigados por ela: a distribuição de poder na sociedade; a descrição e análise dos sistemas políticos; a observação do comportamento político e dos mecanismos eleitorais; as formas de governo.
Por sua vez, a Filosofia da política (ou Filosofia política) é um campo da Filosofia que analisa racionalmente o fenômeno político e suas características, as instituições sociais, as práticas políticas, os regimes políticos e as formas de governo, as teorias de estado e a origem e formação da sociedade.[2] Para Cotrim (2008), a Filosofia Política tem “como objetivo a analisar as diversas formas de poder, de relações entre o poder e os cidadãos, dos sistemas de governo.[3]segundo ele, “integram a temática básica da filosofia política as reflexões em torno do poder, do Estado, dos regimes políticos e formas de governo, da participação dos cidadãos na vida pública, entre outros temas.”[4] São algumas das questões abordadas pelas Filosofia Política, a saber: o que é política? O que é poder? Qual tipo de poder é próprio da política? Quem é o detentor do poder político? Como se relacionam os fenômenos do poder, da força, da violência e a atividade política. O que é o Estado? Qual sua origem e sua função? Qual a relação entre estado, governo e povo? Qual a melhor forma de organização política? Qual a relação entre política e ética?
Fica, portanto, claro que existe uma diferença entre política, politicagem, ciência política e Filosofia política.





[1] Cf. COMTE-SPONVILLE. 2002, p. 27-28.
[2] Cf. COTRIM, Gilberto, 2008, p. 86.
[3] DUROZOI & ROUSSEL, 1993, p.374.
[4] COTRIM, 2008, p 86.

Referencia bibliográfica:
CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2001.
COMTE-SPONVILLE. Apresentação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
COTRIM, Gilberto. Filosofia Temática. São Paulo: Saraiva, 2008;
DUROZOI, Gérard & ROUSSEL, André. Dicionário de Filosofia. 5ª ed. Campinas, SP: Papirus, 1993.


domingo, 1 de fevereiro de 2015

2015, ANO DECISIVO PARA A NOSSA CIVILIZAÇÃO


Wlirian Nobre
Geógrafo e professor


De acordo com a Agência Espacial Americana (NASA) o ano de 2014 foi o ano mais quente desde 1880, ano em que começam os registros da temperatura no planeta. O pior de tudo isso é que nesses 134 anos de medição os dez anos mais quentes, com exceção de 1998, foram de 2000 pra cá. Isso é estatística, é fato, portanto, não há dúvida sobre o aquecimento global assim como não há razão para otimismo.
Chegamos a um momento crítico de nossa existência. Somos uma só humanidade e um único planeta e, portanto o nosso destino é comum. Ou formamos uma aliança global com uma consciência planetária ou não conseguiremos salvar a nossa civilização.
De acordo com Boff (2013), a Terra conheceu 15 grandes dizimações. A última ocorreu a 65 milhões de anos atrás. Agora, as provas são irrefutáveis, é a espécie humana que ameaça todas as formas de vida do planeta. Estamos travando uma guerra irracional com a natureza apenas para acumular riqueza. Apenas 7% dos mais ricos contribuem com 50% das emissões de gases do efeito estufa, é um desejo infinito num planeta que é finito. Considere que em 2070 seremos cerca de 10 bilhões de habitantes e precisaremos aumentar a produção de alimentos em cerca de 70%. Se todos os habitantes desejarem levar uma vida semelhante ao modo de produção e consumo dos países capitalistas avançados “apenas às reservas de petróleo conhecidas seriam esgotadas em 19 dias” (LÖWY, 2014, p.46).
Se depender dos governos e da elite dominante, obcecada por riqueza material, entraremos numa fase de desastres ecológicos de proporções incalculáveis. O exemplo da última conferência do clima representa bem essa realidade. A COP-19 realizada em Lima, no Peru, em dezembro do ano passado, foi um grande teatro do absurdo. Em 10 dias de reuniões os representantes dos 196 países não chegaram a um consenso e mais uma vez jogaram as decisões importantes para o próximo encontro que ocorrerá em Paris no final desse ano.
Lamentavelmente os governos não conseguem perceber a urgência da crise ambiental e vão adiando acordos importantes para não afetar sua economia. As propostas dessas conferências são apenas paliativas que suavizam os problemas. Mas as mudanças não são simples, é preciso uma profunda mudança de paradigma (visões, valores, tradições, saberes, etc.). É preciso uma mudança radical, as meias medidas, as semirreformas, as conferências, os créditos de carbono são incapazes de dar uma solução ao problema.
No sistema capitalista vigente a busca da sustentabilidade é pura fantasia, tudo é visto pela ótica do mercado, o desejo é maximalizar os lucros à custa da natureza gerando desigualdades sociais e desequilíbrios ecológicos. A raiz do problema é o “consumo fundado na ostentação, no desperdício, na alienação mercantil e na obsessão infinita por riqueza” (LÖWY, 2014, p. 48). Como reverter isso sem romper com a lei do mercado, do lucro e da acumulação desenfreada. Somente um projeto de mudança radical pode fornecer uma alternativa ao progresso destrutivo capitalista.
A verdadeira sustentabilidade que visa o coletivo, a cooperação e a harmonia entre todas as formas de vida está na contramão do sistema capitalista. Cresce no mundo inteiro um movimento de inconformismo, pessoas que reagem, contestam, subvertem e desobedecem as determinações desse sistema padronizante. Entretanto, essas mudanças de comportamento e atitude ainda são insuficientes, é preciso romper com os fundamentos da civilização capitalista. Esperamos que a COP-20 seja um evento global onde as populações possam encurralar os governos para que esses rompam com a ditadura da economia lançando os alicerces de uma nova sociedade, antes que o planeta mergulhe no caos.

REFERÊNCIAS
BOFF, Leonardo. Sustentabilidade: o que é – o que não é. 2º ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
CARLSSON, Chris. Nowtopia: iniciativas que estão construindo o futuro de hoje. Porto Alegre: Tomo editorial, 2014.
LÖWY, Michael. O que é o ecossocialismo? 2º ed. – São Paulo: Cortez, 2014.

Ensaio SOBRE A OPINIÃO

“Ah, como uma cabeça banal se parece com outra! Elas realmente foram todas moldadas na mesma forma! A cada uma delas ocorre a mesma ide...