domingo, 3 de novembro de 2013

A RELIGIÃO E A SECULARIZAÇÃO




Epitácio Rodrigues

Com o advento da modernidade houve também uma mudança no paradigma de explicação da realidade, tendo como referência a filosofia, a ciência e a tecnologia. Esse fenômeno ficou conhecido como secularização. O termo deriva do vocábulo latino saeculum, que denota “mundo, vida terrena” e ressalta o aspecto profano, laico e material em oposição ao aspecto religioso da realidade. A palavra secularização, originariamente utilizada no campo jurídico para designar a passagem de um religioso para a vida laica ou a alienação de um bem da Igreja para o Estado[1], foi incorporada ao discurso filosófico para designar o processo através do qual a religião, paulatinamente, perdeu o poder de influência sobre algumas esferas fundamentais da vida social.
Vale ressaltar que essa crescente autonomia humana em relação à religião não representa um desaparecimento da instituição religiosa ou da sua prática. O que se deu foi mais um fenômeno de subjetivação da experiência religiosa, relegando suas práticas ao âmbito mais subjetivo e privado.
Historicamente a secularização se configura como um fenômeno da modernidade que principia como uma consequência de uma gama de movimentos de ideias e correntes filosóficas, dentre as quais o racionalismo, que enfatiza a capacidade racional do ser humano de explicação da realidade; o empirismo, que coloca a experiência – contato com a realidade através dos sentidos – como a única fonte plausível do conhecimento; o iluminismo e a defesa da autonomia política, social e cultural em relação à religião; o niilismo e negação da crença em um absoluto como fundamento metafísico dos valores éticos estéticos e sociais; o positivismo, que postula a religião como um estágio primitivo da sociedade e a valorização do método empírico e experimental como fonte do conhecimento e outras tendências assumidas pela reflexão filosófica.
A presença da secularização na sociedade contemporânea pode ser percebida a partir das esferas do conhecimento, da política e da ética. No campo do conhecimento, houve o abandono do discurso teológico como base para explicação do mundo e da realidade humana; na esfera política, deu-se o crescimento do número de estados que nas suas constituições se autoproclamaram laicos e também o abandono da monarquia referendada em concepções teocráticas como forma de governo; no campo da ética, o fortalecimento do discurso dos direitos humanos contribuiu para a consolidação de uma ética civil fundada no consenso e no contrato social e não mais em postulados religiosos como a revelação divina e outras referências de ordem religiosa.
Portanto, falar em secularização é tematizar um fenômeno da modernidade que engloba um processo de redução da influência da instituição religiosa, na esfera pública, como fonte de explicação da realidade, como referência para o governo da sociedade, e, finalmente, como fundamento dos valores morais e éticos.
Hoje, apesar da secularização ser um fato inconteste, penso que, por dever de ofício crítico, faz-se oportuno indagar se ela representa um progresso ou um desvio de curso no processo de autoconstrução da sociedade humana. Antes, porém, de tentar resenhar uma direção para este questionamento, gostaria de mencionar o fato de que a secularização, parece-me, é mais presente no Ocidente e entre as sociedades cristãs. No tocante à questão, percebo um aspecto libertador no fenômeno da secularização, na medida em que ele pode suscitar um senso de desconfiança, uma exigência fundamental para que cada crente possa fazer uma análise mais objetiva da sua prática religiosa, diminuindo o risco de tendências acentuadamente dogmáticas que estão na base de posturas fundamentalistas, sectárias e outras formas de extremismos fiduciais. Além disso, esse senso de desconfiança pode auxiliar na formação de um correto senso de realidade capaz de possibilitar um entendimento de que as organizações ou instituições religiosas são lideradas por pessoas que não estão acima do bem e do mau e que, portanto, são suscetíveis de falhas. Porém, não é menos verdade que a secularização exacerbada possa obnubilar dimensões fundamentais do ser humano como a capacidade de transcendência e de teleologia, tornando-o muito voltado ao imanente e desencadeando, não raro, uma experiência de vazio existencial. A racionalidade filosófica e a racionalidade técnico-científica não dão conta de explicar, até o momento, toda a complexidade da existência humana. Na verdade, elas são tipologias de saberes historicamente construídos como a religião, arte, o mito e o senso comum etc. Então vale perguntar se a absolutização da racionalidade filosófica e técnico-científica e consequentemente da secularização não seria incorrer no mesmo erro daqueles que estavam à frente da instituição religiosa no passado?


[1] Cf. MORIN, Dominique. Para Falar de Deus. São Paulo: Loyola, 1993, p.27.

domingo, 18 de agosto de 2013

O SER HUMANO ENTRE A LIBERDADE E O CONFORMISMO

 Epitácio Rodrigues


Liberdade é uma palavra que faz parte do nosso uso diário. Mas o conceito expresso por ela, não raro, causa confusões quanto à sua natureza (O que é a liberdade?), quanto à sua extensão (é psicológica, social, moral, política), e quanto à sua possibilidade (é possível uma liberdade real ou ela é apenas um ideal a ser buscado?).

Neste texto, vamos apresentar uma compreensão mais ou menos consensual da liberdade no discurso filosófico, seguido de alguns conceitos que negam a liberdade humana e apresentar um ponto de vista pessoal sobre o assunto.

Quando nos discursos filosóficos, fala-se em liberdade, abstraindo-se de algumas posições mais particulares, pode-se entendê-la como a capacidade humana de poder decidir e agir isento de coações internas ou externas. Os escolásticos, lembra Mondin, falavam em immunitas a coactione. Como essa coação pode assumir uma configuração multifacetada, muito cedo se começou a fazer uma tábua tipológica da liberdade: a liberdade física, que consiste na ausência de coação física, a liberdade moral, que se configura como a ausência de pressões ligadas à moral como determinantes de nossa ação, sejam elas castigos, punições, prêmios etc. Liberdade política, como ausência de determinismos políticos, liberdade social, isenção de determinismos sociais[1].

Porém, não faltam aqueles que colocam em dúvida essa compreensão de liberdade ancorando-se ora na noção de necessidade, ora de fatalismo, ora de contingência. Por necessidade, entende-se um conjunto de leis causais que regem a totalidade do universo e, como o ser humano é parte desse universo regido por leis necessitarias superiores à vontade humana, não haveria espaço para decisões e ações humanas livres.

Os adeptos do fatalismo, cuja raiz etimológica aponta para fatalis, fatum, (destino), acreditam ser a vida humana regida por forças transcendentes e superiores e, portanto, totalmente independentes da nossa vontade.[2] Para Japiassú e Marcondes, o conceito de fatalismo implica a compreensão doutrinária, segundo a qual os acontecimentos do universo e humano estão sob um necessitarismo absoluto, conforme os desígnios do destino. Porém, lembram que a noção de destino não implica a ideia de causalidade. Ou seja, não é por uma relação de causa e efeito que as coisas acontecem na vida humana. O ponto central do conceito de fatalismo é a crença na existência de forças superiores às humanas que fazem pressão sobre sua vontade de modo irreversível.

Por outro lado, há também aqueles que negam a submissão do homem a certas leis da natureza, porque esta mesma natureza resulta do acaso e da contigência. A própria existência humana nada mais seria do que um feixe de relações construídas de modo aleatório e fugaz, sendo, portanto, impossível deliberar racionalmente nesse universo caótico.

Sobre a questão da liberdade, não posso ignorar o fato de que existem certas regularidades na natureza. Porém, que isso venha negar, no âmbito da cultura, a possibilidade de o ser humano decidir e agir com isenção de coações seria um exagero que a própria experiência cotidiana atesta contra. Noutras palavras, existem sim aspectos da nossa existência que a natureza tem grande poder de determinação. Não posso mudar, por exemplo, a minha composição genética e nem evitar o fenômeno da morte, já que a morte é um dado natural: todos os seres que nascem, morrem! Porém, posso antecipar essa experiência, posso criar condições para retardá-la. O ser humano é um ser cuja existência é uma construção. Seu mundo não é apenas natural, mas humano, ou seja, um feixe de convenções significados criados por ele e aceitos com tais. Vivemos num mundo da cultura, onde vários elementos da natureza são transformados para satisfazer às nossas aspirações. Noutras palavras, existe um espaço da existência no qual a possibilidade de decidir e agir são um fato. Assim, defendo que há uma liberdade. Situada, mas liberdade; limitada, mas liberdade.

Portanto, a questão a ser levantada não diz respeito à possibilidade, natureza ou extensão da liberdade, visto que os maiores adversários da liberdade humana, não são o determinismo ou o fatalismo, mas a crença fatalista e a crença determinista, ou seja, um jeito de pensar e crer a natureza que geram no indivíduo o conformismo. Não são poucos os indivíduos que aceitam ingênua ou covardemente o status quo sob o discurso de que é inútil reagir ou resistir. As coisas são assim mesmo, não há como mudar. Mas o fato é que o conformismo foi uma criação cultural que infestou o Ocidente, a partir da escola Estoica. Para os fundadores dessa escola, como já afirmamos noutra ocasião, o ser humano é apenas um órgão do imenso organismo chamado Universo. Um ser a mais dentre os seres da natureza. Sua alma é apenas uma centelha da manifestação da Razão Universal. Por isso, a liberdade humana consiste em compreender e conformar suas ações e vontade às leis dessa Razão universal. Ao ser humano cabe aceitar e seguir serenamente e com alegria interior a Razão Universal. “Segue a natureza que é teu guia” – diziam eles. Epitecto, filósofo estoico, afirma: “até hoje não houve coisa alguma que me trouxesse impedimento ou coação. Por quê? Porque sempre dispus minha vontade segundo a Vontade de Deus. Quer Deus que eu tenha febre? também eu quero”. Assim, o ideal de liberdade se resume em compreender as inexoráveis leis que regem o universo, segundo Razão Universal e colocar-se em harmonia com ela, numa atitude de profunda resignação da vontade.

Para os estoicos, a vida feliz consiste numa disposição da vontade para aceitar, com serenidade, as coisas como elas são. O homem sábio é aquele capaz de viver a apatheia - apatia, no sentido filosófico estoico -, isto é, a indiferença em relação às emoções e as paixões e, através dela, alcançar a ataraxia, ou seja, o ideal de serenidade ou imperturbabilidade da alma alcançada quando se domina ou elimina as paixões e emoções.

A filosofia estoica influenciou muito a razão ocidental, uma vez que seu discurso foi adotado por teólogos e filósofos cristãos, por causa da apologia estoica à resignação e ao sofrimento como caminhos para a perfeição. Afirmações tão comuns como: “é vontade de Deus”, “foi Deus que quis assim” ou “devemos aceitar, pois tudo é vontade de Deus” são construtos históricos que ecoam essa influência estoica. É claro que a verdadeira mensagem do cristianismo não sugere a resignação, mas paz ativa.

Em suma, penso que devemos sim advogar, com base racional, a existência de uma liberdade humana, enquanto poder de decidir e agir isento de coações. Sendo para isso necessário um conhecimento e um exame das possibilidades reais e concretas para a decisão e a ação. Penso também que essas teorias que negam a liberdade humana são, em última instância, formas veladas de con-formismo. Pessoas que, por medo de decidir movidas pela indignação, assumem a resignação: o “abstém e suporta” dos estoicos.



Bibliografia referida no texto:

Dicionário Básico de Filosofia. Hilton Japiassú e Danilo Marcondes, p.103.
MONDIN, Battista. O Homem, quem é ele? São Paulo, paulinas, 1980, pp. 108-109;
CHAUÍ, Marilena. Iniciação à Filosofia, Ática, 2011, p.288.
RODRIGUES, Epitácio. As Escolas Filosóficas no Período do Helenismo. In: filosofiaprofrodrigues.blogspot.com. postado em 15 de set/2010.



[1] Cf. Mondin, pp. 108-109.
[2] Cf. Chauí, p. 288.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Os filósofos e os protestos de junho



(O texto a seguir é do filósofo Paulo Ghiraldelli Jr., no qual ele faz uma análise da leitura feita por alguns filósofos brasileiros acerca dos protestos que ocorreram no Brasil recentemente)

Filósofos de esquerda como Marilena Chauí e Vladimir Safatle divergiram em suas análises do movimento de protestos. Pejorativamente, Chauí falou da “dimensão mágica” dos protestos, algo que derivaria do não domínio técnico e econômico da Internet por parte de seus usuários, levando em conta que a Internet, e em particular o Facebook, teriam sido o ponto de origem dos protestos. (1) Safatle, por sua vez, comemorou o que ele supôs que estivesse na ordem do dia do movimento de protestos, a saber, a democracia representativa. Apostou então na criatividade dos protestos, que segundo ele poderiam propor novas formas de organização ao se livrarem da representação. (2)
Não pude endossar a tese da professora Marilena, claro, porque não vejo como afirmar que há algum impedimento em se combinar protestos pela Internet só porque não se é o seu dono. Argumentei que, se o que ela disse tivesse base, também o livro não seria um veiculo de comunicação nosso, dos filósofos que ajudaram revoluções com suas publicações. Afinal, não somos donos das editoras! (3)
Também não endossei a tese de Safatle, uma vez que o movimento de protestos questionou a representação atual, não o princípio da representatividade na democracia representativa. Os manifestantes disseram claramente que estavam cansados de partidos políticos e coisas do gênero, mas poucos deles afirmaram que nunca mais votariam em alguém. Não disseram, também, que por causa do movimento ter uma certa horizontalidade e uma ojeriza às vanguardas, a forma de governo exclusivamente “das ruas” seria a melhor maneira de administrar o Brasil. Safatle se empolgou. Aliás, se estivesse certo, aí sim o movimento teria de parar o protesto e começar a pensar em como criar uma democracia de base direta no Brasil – coisa que eu duvido que alguém saiba como fazer para além dos mecanismos mistos que conhecemos, e que até foram propostos por Joaquim Barbosa. (4)
Os protestos chegaram tardiamente entre os filósofos conservadores. Menos afoitos que a esquerda, talvez eles tenham esperado as coisas se acalmarem para dar seus palpites. Denis Rosenfield e Luiz Felipe Pondé, que até já chegaram a escrever livro juntos, com o sugestivo título “Por que viramos à direita” ou algo parecido, tomaram caminhos diferentes. Rosenfield escreveu entusiasmado com tudo que ocorreu. Praticamente deixou a filosofia de lado para comemorar o antipetismo que enxergou no movimento. Esse antipetismo foi, na verdade, uma parte do antipartidarismo em geral que esteve de fato presente nos protestos. Rosenfield notou isso, mas tomou tal coisa como não tão importante diante da possibilidade de vibrar diante da visão de bandeiras do PT queimadas pelos manifestantes.
Diferentemente, Pondé se aproximou da análise de Safatle, ou melhor, praticamente endossou a análise do seu colega de Folha de S. Paulo. Também ele viu no movimento alguma possibilidade de fazer surgir seriamente uma crise de legitimidade da democracia representativa. Todavia, enquanto Safatle olhou para tal coisa com esperança alegre, Pondé, não de todo correto, assimilou a perda de legitimidade da representatividade como necessariamente um caminho de violência, e então fez as advertências de praxe para um conservador moderado.
Nesse caminho, Pondé trouxe Hobbes, Rousseau e Tocqueville para a sua exposição. (5) Deu ao primeiro um caráter muito mais totalitário do que o verdadeiro, e expôs Rousseau como que possuindo um caráter unicamente revolucionário. Tudo isso para abraçar Tocqueville. Nesse caso, criou aquilo que, não raro, eu denuncio em alguns artigos do Pondé: a caricatura. Nem sempre ele bate no adversário sem antes torná-lo já derrotado ao mostra-lo desenhado antes pelo chargista que por um retratista cuidadoso. Às vezes isso até ajuda. Mas, na maioria das vezes, atrapalha sua própria argumentação.
Hobbes diz claramente em sua teoria que o governado, mesmo tendo cedido ao contrato e conferido direitos absolutos ao Príncipe, se este falta com seu dever de chefe de estado e de seu protetor público, há legitimidade na rebeldia do súdito, aliás, surge aí até o dever de rebelião. Pondé nada fala sobre isso.
Rousseau não possui apenas uma via de leitura. Quando ficamos atentos a Kant, vemos que ele lê Rousseau como um reformista que quer mudanças pela via da educação. Quando lemos Engels, vemos então que Rousseau pode muito bem ser entendido como alguém que também toma a via revolucionária como caminho de mudanças. Isso não é nenhuma novidade. Vários intérpretes de Rousseau notaram isso que noto aqui.  Pondé também nada fala sobre isso. Aliás, já se tornou um lugar comum em seus artigos ele querer condenar o marxismo revolucionário por meio da condenação de Rousseau, o que, a meu ver, é um entendimento excessivamente unilateral do genebrino e, não raro, uma via assumida também pela esquerda que Pondé execra.
Até aqui, esse é o quadro das manifestações de alguns filósofos que foram à mídia para opinar sobre os protestos. Outros textos, no entanto, foram menos ideológicos. Artigo bastante analítico veio do Rio de Janeiro, pelas mãos de Luiz Eduardo Soares. Mas o leitor que não tiver paciência pode pegar a ideia central nas entrevistas desse pensador com o qual compartilho um passado semelhante quanto ao vínculo com Richard Rorty. (6) Não caberia falar de Soares aqui, mas sugiro ao leitor que o procure.
Da minha parte, não fui apenas um observador, mas um participante nos protestos, e diferentemente dos colegas citados acima, fiz mais de um artigo sobre o assunto, notando filosoficamente que os protestos poderiam ser chamados de “a revolução do indivíduo”. (7)
Por enquanto, salvo alguns outros colegas que, talvez, eu possa abordar em outros textos, este é o mapa que faço a respeito das falas nossas, de filósofos, sobre o movimento que mudou a agenda política brasileira de um modo bem diferente de outras mudanças passadas.

© 2013 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ

2. Sem partido (Safatle)
7. A revolução do indivíduo (Ghiraldelli)
Disponível em: http://ghiraldelli.pro.br/os-filosofos-e-os-protestos-de-junho/; acesso: 07/07/2013.

SABER POPULAR E SABEDORIA FILOSÓFICA[1]



Epitácio Rodrigues da Silva
 

“O problema do saber popular não é se ele é verdadeiro ou falso, mas a ausência de uma fundamentação mais rigorosa e consistente. As pessoas não buscam saber o porquê dessas noções, apenas as reproduzem, porque é assim que pensa o grupo social no qual estão inseridas.”


No uso cotidiano e vulgar do termo filosofia podemos perceber uma certa vinculação com a ideia de sabedoria, porém com uma ênfase mais pragmática. Quando ouvimos, por exemplo, “eu tenho uma filosofia de vida”, o termo filosofia aqui se refere ao conjunto de princípios práticos que uma ou mais pessoas se apoiam para conduzir ou nortear a sua própria vida. Na maioria das vezes, esses princípios possuem um teor ético e nascem da observação da própria vida, de tal forma que a expressão filosofia de vida denota mais uma sabedoria de vida traduzida em preceitos, provérbios ou adágios curtos, conservados pela tradição popular e nem sempre refletido adequadamente. Não por nada, muita gente pensa que filosofar é criar frases bonitas ou provérbios de efeito para divulgar aos outros. Isso é, com toda certeza, uma noção equivocada e muito distante do que se deve entender por Filosofia. Mas então qual a diferença entre saber popular e filosofia?

O senso comum e o saber popular
O ser humano desde que tomou conhecimento de si mesmo como ser no mundo, sente a necessidade de compreender a realidade que o cerca e para os fatos que fazem parte da vida. Assim, ao longo da história humana cada sociedade constrói um conjunto de saberes que expressam uma compreensão da realidade, formada a partir de uma gama de opiniões, hábitos e formas de pensamentos dos quais os indivíduos se servem no dia-a-dia, para entender o mundo circundante e orientar a sua própria vida.
Essa forma de compreensão da realidade é construída de maneira espontânea, assistemática e fragmentária, tendo como suporte as vivências cotidianas e a necessidade premente que temos de apresentar respostas às questões mais imediatas.
Além de espontâneo, assistemático e fragmentário, o saber popular possui um caráter anônimo, pois não apresenta explicações assinadas a quem se pode atribuir a autoria. Trata-se de um corpo de saberes gestado e transmitido, quase que por osmose, às diversas camadas sociais e gerações diferentes, criando um verdadeiro patrimônio cognitivo, valorativo e cultural do senso comum e que constitui a sabedoria popular de um povo. Porém, apesar do seu inquestionável valor existencial para os indivíduos que fazem parte dessa dada sociedade, trata-se de um saber relativamente dogmático, superficial, imediatista e pragmático. Por isso, não há nesse corpo de conhecimento do senso comum a garantia de que ele apresente suficiente grau de bom senso, devendo, portanto, ser submetido a uma análise mais criteriosa da sua origem, da sua história e do seu fundamento.

Da sabedoria popular à sabedoria filosófica
Entre o saber popular e a Filosofia existe uma relação de desenvolvimento e ruptura. De fato, a reflexão filosófica, enquanto forma de saber sistemático, rigoroso e radical, tem como ponto de partida algumas questões existenciais percebidas numa experiência efêmera, mas elevada às suas bases fundamentais. Nesse sentido, alguns problemas antropológicos do saber popular e da sapiência filosófica se identificam, porém há uma ruptura na busca de entendimento e no processo de construção de respostas a esses mesmos problemas.
O processo de filosofar exige como condição primeira a adoção consciente e sistemática de uma atitude de suspeição ou desconfiança em relação aos conhecimentos, fatos, coisas e valores com os quais nos deparamos cotidianamente. O que se crer, pensa, ouve e vê não podem ser tomados como autoevidentes e inquestionáveis, mas colocados a uma certa distância pedagógica. Esse estranhamento ou desconfiança em relação ao mundo a nossa volta é condição indispensável à prática da Filosofia. De fato, é impossível adentrar no universo da Filosofia sem essa ruptura com os conhecimentos prévios, com os pré-conceitos e com os pré-juízos. Pois o mundo humano é uma construção simbólica feita por nós mesmos, graças à capacidade que temos de atribuir significações às coisas e expressar através da linguagem essas significações. Porém, com o passar do tempo nós mesmos começamos a aceitar essa organização ou criação simbólica da realidade como natural. Daí a importância de uma pedagógica postura de afastamento/estranhamento ou desconfiança em relação ao mundo de conceitos, ideias e imagens mentais que carregamos como verdadeiras e evidentes. Sem isso não é possível fazer uma desconstrução adequada da sua visão de mundo. Ou seja, se eu nunca desconfiar do que vejo, do que penso, do que digo, do que faço não estarei em condições de examiná-lo de fato. Mas, a desconfiança deve ceder lugar à análise crítica.
Vale lembrar que crítica em Filosofia é exame racional, sistemático e rigoroso do conhecimento que temos da realidade. O caminho mais comum para fazer uma análise crítica é a indagação problematizadora. Na nossa pressa, apressadamente perguntamos e apressadamente respondemos.
Mas perguntar é apenas o princípio da busca, faz-se necessário que ela seja transformada em investigação. Uma busca sistemática e com direção orientada a uma resposta. O perguntador, para tornar-se um pensador, precisa comprometer-se com a pergunta, tornando-se um investigador. Se em cada pergunta já está subjacente um direcionamento da resposta, sem o compromisso da busca não há filosofia. Pois, não é a pergunta, propriamente dita, a genitora da Filosofia, visto que perguntar é, como dissemos, próprio do ser humano. Mas, será o tipo de pergunta e o compromisso rigoroso na busca da resposta. É a relação pergunta - com todos os elementos acima elucidados - e a busca ou escuta da resposta, que revela o caráter dialógico da Filosofia.
Ou seja, a filosofia no seu aspecto global e originário, nasce da necessidade humana de encontrar ou construir o sentido da sua própria existência, para além das experiências imediatas e pragmáticas do dia-a-dia. Ela tem, portanto, a dimensão de busca às respostas mais teleológicas para o que somos, o que fazemos, o que pensamos, o que dizemos e o que esperamos. Isso, por si só, explica e justifica a sua razão de ser. Mas isso não significa que quem não filosofa não tem uma vida com sentido? Afirmar tal coisa seria um contracenso. O que se explicita aqui é que a Filosofia nasce de um esforço para fundamentar a nossa própria existência sobre uma base conceitual quando os discursos míticos, as explicações religiosas e o saber do senso comum se mostram insatisfatórios aos espíritos mais aguçados e ávidos de uma fundamentação coerente, consistente e racional da sua própria razão de ser-no-mundo.

Questões para debate:

1. Qual a importância do saber popular?
2. Como o saber popular se relaciona com a sabedoria filosófica?
3. O exercício da reflexão filosófica anula, de forma definitiva, a influência do saber popular na vida de quem filosofa?


[1] Artigo publicado na revista Mundo Jovem, ano 51, nº 438, julho/2013, p. 21.

Ensaio SOBRE A OPINIÃO

“Ah, como uma cabeça banal se parece com outra! Elas realmente foram todas moldadas na mesma forma! A cada uma delas ocorre a mesma ide...