domingo, 3 de novembro de 2013

A RELIGIÃO E A SECULARIZAÇÃO




Epitácio Rodrigues

Com o advento da modernidade houve também uma mudança no paradigma de explicação da realidade, tendo como referência a filosofia, a ciência e a tecnologia. Esse fenômeno ficou conhecido como secularização. O termo deriva do vocábulo latino saeculum, que denota “mundo, vida terrena” e ressalta o aspecto profano, laico e material em oposição ao aspecto religioso da realidade. A palavra secularização, originariamente utilizada no campo jurídico para designar a passagem de um religioso para a vida laica ou a alienação de um bem da Igreja para o Estado[1], foi incorporada ao discurso filosófico para designar o processo através do qual a religião, paulatinamente, perdeu o poder de influência sobre algumas esferas fundamentais da vida social.
Vale ressaltar que essa crescente autonomia humana em relação à religião não representa um desaparecimento da instituição religiosa ou da sua prática. O que se deu foi mais um fenômeno de subjetivação da experiência religiosa, relegando suas práticas ao âmbito mais subjetivo e privado.
Historicamente a secularização se configura como um fenômeno da modernidade que principia como uma consequência de uma gama de movimentos de ideias e correntes filosóficas, dentre as quais o racionalismo, que enfatiza a capacidade racional do ser humano de explicação da realidade; o empirismo, que coloca a experiência – contato com a realidade através dos sentidos – como a única fonte plausível do conhecimento; o iluminismo e a defesa da autonomia política, social e cultural em relação à religião; o niilismo e negação da crença em um absoluto como fundamento metafísico dos valores éticos estéticos e sociais; o positivismo, que postula a religião como um estágio primitivo da sociedade e a valorização do método empírico e experimental como fonte do conhecimento e outras tendências assumidas pela reflexão filosófica.
A presença da secularização na sociedade contemporânea pode ser percebida a partir das esferas do conhecimento, da política e da ética. No campo do conhecimento, houve o abandono do discurso teológico como base para explicação do mundo e da realidade humana; na esfera política, deu-se o crescimento do número de estados que nas suas constituições se autoproclamaram laicos e também o abandono da monarquia referendada em concepções teocráticas como forma de governo; no campo da ética, o fortalecimento do discurso dos direitos humanos contribuiu para a consolidação de uma ética civil fundada no consenso e no contrato social e não mais em postulados religiosos como a revelação divina e outras referências de ordem religiosa.
Portanto, falar em secularização é tematizar um fenômeno da modernidade que engloba um processo de redução da influência da instituição religiosa, na esfera pública, como fonte de explicação da realidade, como referência para o governo da sociedade, e, finalmente, como fundamento dos valores morais e éticos.
Hoje, apesar da secularização ser um fato inconteste, penso que, por dever de ofício crítico, faz-se oportuno indagar se ela representa um progresso ou um desvio de curso no processo de autoconstrução da sociedade humana. Antes, porém, de tentar resenhar uma direção para este questionamento, gostaria de mencionar o fato de que a secularização, parece-me, é mais presente no Ocidente e entre as sociedades cristãs. No tocante à questão, percebo um aspecto libertador no fenômeno da secularização, na medida em que ele pode suscitar um senso de desconfiança, uma exigência fundamental para que cada crente possa fazer uma análise mais objetiva da sua prática religiosa, diminuindo o risco de tendências acentuadamente dogmáticas que estão na base de posturas fundamentalistas, sectárias e outras formas de extremismos fiduciais. Além disso, esse senso de desconfiança pode auxiliar na formação de um correto senso de realidade capaz de possibilitar um entendimento de que as organizações ou instituições religiosas são lideradas por pessoas que não estão acima do bem e do mau e que, portanto, são suscetíveis de falhas. Porém, não é menos verdade que a secularização exacerbada possa obnubilar dimensões fundamentais do ser humano como a capacidade de transcendência e de teleologia, tornando-o muito voltado ao imanente e desencadeando, não raro, uma experiência de vazio existencial. A racionalidade filosófica e a racionalidade técnico-científica não dão conta de explicar, até o momento, toda a complexidade da existência humana. Na verdade, elas são tipologias de saberes historicamente construídos como a religião, arte, o mito e o senso comum etc. Então vale perguntar se a absolutização da racionalidade filosófica e técnico-científica e consequentemente da secularização não seria incorrer no mesmo erro daqueles que estavam à frente da instituição religiosa no passado?


[1] Cf. MORIN, Dominique. Para Falar de Deus. São Paulo: Loyola, 1993, p.27.

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