terça-feira, 15 de março de 2011

Introdução à Filosofia


 (1º ano de Filosofia do Ensino Médio - seleta de textos Marilena Chauí)
A palavra filosofia é grega. É composta de duas outras: philo e sophia. Philo quer dizer “aquele ou aquela que tem um sentimento amigável”, pois deriva de philia, que significa “amizade e amor fraterno”. Sophia quer dizer “sabedoria” e dela vem a palavra sophós, “sábio”.
Filosofia significa, portanto, “amizade pela sabedoria” ou “amor e respeito pelo saber”, e filósofo, “o que ama ser sábio” ou “tem amizade pelo saber”.
Atribui-se ao filósofo Pitágoras de Samos a invenção da palavra filosofia. Pitágoras teria afirmado que a sabedoria plena e completa pertence aos deuses, mas que os homens podem desejá-la ou amá-la, tornando-se filósofos.
... A Filosofia surgiu quando alguns gregos, admirados e espantados com a realidade, insatisfeitos com as explicações que a tradição lhes dera,começaram a fazer perguntas e buscar respostas para elas, demonstrando que o mundo e os seres humanos, os acontecimentos naturais e as coisas da natureza podem ser conhecidos pela razão humana, e que a própria razão é capaz de conhecer-se a si mesma.
Em suma, a Filosofia surgiu quando alguns pensadores gregos se deram conta  de que a verdade do mundo e dos humanos não era algo secreto e misterioso, que precisasse ser revelado por divindades a alguns escolhidos, mas que, ao contrário, podia ser conhecida por todos através das operações mentais de raciocínio; e quando esses pensadores compreenderam que o conhecimento depende apenas do uso correto do pensamento, que permite que a verdade possa ser conhecida por todos.
Esses pensadores descobriram também que a linguagem respeita as exigências do pensamento e que, por esse mesmo motivo, os conhecimentos verdadeiros podem ser transmitidos e ensinados a todos.
1. A consciência mítica: dimensão criativa e instigadora do imaginário
Os historiadores da Filosofia indagam se ela nasceu realizando uma transformação gradual sobre os mitos gregos ou produzindo uma ruptura radical com os mitos.
O que é um mito?
Mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens, da plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos, do bem e do mal, da morte, etc.)
Quem narra o mito? O poeta-rapsodo. Quem é ele? Por que tem autoridade? Acredita-se que o poeta é um escolhido dos deuses, que lhe mostram os acontecimentos passados e permitem que ele veja a origem de todos os seres e de todas as coisas para que possa transmiti-la aos ouvintes. Sua palavra – o mito- é sagrada porque vem de uma revelação divina. O mito é, pois, incontestável e inquestionável.
Como o mito narra a origem do mundo e de tudo o que nele existe?
De três maneiras principais:
1. Encontrando o pai e a mãe das coisas e dos seres, isto é, tudo o que existe decorre de relações sexuais entre forças divinas pessoais. Essas relações geram os demais deuses: os titãs (seres semi-humanos e semidivinos), os heróis (filhos de um deus com uma mulher humana ou de uma deusa com um humano), os humanos, os metais, as plantas, os animais, as qualidades (como quente e frio, seco e úmido, claro e escuro, bom e mal, justo e injusto, belo e feio, certo e errado, etc.).
A narração da origem é assim, uma genealogia, isto é, uma narrativa da geração dos seres, das coisas, das qualidades por outros seres, que são pais ou antepassados.

2. Encontrando uma rivalidade ou uma aliança entre os deuses que faz surgir alguma coisa no mundo. Nesse caso, o mito narra ou uma guerra entre as forças divinas, ou uma aliança entre elas para provocar alguma coisa no mundo dos homens.
É assim, por exemplo, que o poeta Homero, na Ilíada, que narra a guerra de Tróia, explica por que, em certas batalhas, os troianos eram vitoriosos e, em outras, a vitória cabia aos gregos. Os deuses estavam divididos. A cada vez, o rei dos deuses, Zeus, ficava com um dos partidos, aliava-se comum grupo de fazia um dos lados vencer uma batalha.
A causa da guerra, aliás, foi uma rivalidade entre as deusas. Elas apareceram em sonho para o príncipe troiano Paris, oferecendo a ele seus dons, e ele escolheu a deusa do amor, Afrodite. As outras deusas, enciumadas, o fizeram raptar a grega helena, mulher do general grego Menelau. Isso deu início à guerra entre os humanos.

3. Encontrando as recompensas ou castigos que os deuses dão a quem os desobedece ou a quem os obedece. Como o mito narra, por exemplo, o uso do fogo pelos homens? Para os homens, o fogo é essencial, pois com ele se diferenciam dos animais, porque tanto passa a cozinhar os alimentos, a iluminar caminhos na noite, a se aquecer no inverno quanto podem fabricar instrumentos de metal para o trabalho e para a guerra. O mito conta que um titã, Prometeu, mais amigo dos homens do que dos deuses, roubou uma centelha de fogo e a trouxe de presente para os humanos. Prometeu foi castigado (amarrado num rochedo para que as aves de rapina, eternamente, devorassem seu fígado) e os homens também.
Qual foi o castigo dos homens? Os deuses criaram uma mulher encantadora, Pandora, a quem foi entregue uma caixa que conteria coisas maravilhosas, mas que nunca deveria ser aberta. Pandora foi enviada aos humanos e, cheia de curiosidade e querendo dar a eles as maravilhas, abriu a caixa. Dela saíram todas as desgraças, doenças, pestes, guerras e, sobretudo, a morte. Explica-se, assim, a origem dos males no mundo.

2. Cosmogonias e Teogonia
Vemos, portanto, que o mito narra a origem das coisas por meio de lutas, alianças e relações sexuais entre forças sobrenaturais que governam o mundo e o destino dos homens. Como os mitos sobre a origem do mundo são genealogias, diz-se que são cosmogonias e teogonias.
A palavra gonia vem de duas palavras gregas: do verbo gennao (engendrar, gerar, fazer nascer e crescer) e do substantivo genos (nascimento, gênese, descendência, gênero, espécie). Gonia, portanto, quer dizer “geração, nascimento a partir da concepção sexual e do parto”. Cosmos, como já vimos, que dizer “mundo ordenado e organizado”. Assim, a cosmogonia é a narrativa sobre o nascimento e a organização do mundo a partir de forças geradoras (pai e mãe) divinas.
Teogonia é uma palavra composta de gonia e theos, que, em grego, significa “as coisas divinas, os seres divinos, os deuses”. A teogonia é, portanto, a narrativa da origem dos deuses a partir de seus pais antepassados.
Qual é a pergunta dos estudiosos? É a seguinte: ao surgir, a Filosofia não é uma cosmogonia, e sim uma cosmologia, uma explicação racional sobre a origem do mundo e sobre as causas das transformações e repetições das coisas; mas a cosmologia nasce de uma transformação gradual dos mitos ou de uma ruptura radical com os mitos? A filosofia continua ou rompe com a cosmogonia e a teogonia?
Os estudiosos chagaram à conclusão de que as contradições e limitações dos mitos para explicar a realidade natural e humana levaram a Filosofia a retomá-los, porém reformulando e racionalizando as narrativas míticas, transformando-as numa explicação inteiramente nova e diferente.
Quais são as diferenças entre Filosofia e mito? Podemos apontar três como as mais importantes:

1. O mito pretendia narrar como as coisas eram ou tinham sido no passado imemorial, longínquo e fabuloso, voltando-se para o que era antes que tudo existisse tal como existe no presente; a Filosofia, ao contrário, se preocupa em explicar como e por que, no passado, no presente e no futuro, as coisas são como são.

2. O mito narrava a origem por meio de genealogias e rivalidades ou alianças entre forças divinas sobrenaturais e personalizadas; a Filosofia, ao contrário, explica a produção das coisas por elementos naturais primordiais (água ou úmido, fogo ou quente, ar ou frio, terra ou seco), por meio de causas naturais e impessoais (ações e movimentos de combinação, composição e separação ente os quatro elementos primordiais).
Assim, por exemplo, o mito falava nos deuses Urano, Ponto e Gaia; a Filosofia fala em céu, mar e terra. O mito narrava a origem dos seres celestes, terrestres e marinhos pelos casamentos de Gaia (a terra) com Urano (o céu) e Ponto (o mar).
A Filosofia explica o surgimento do céu, do mar e da terra e dos seres que neles vivem pelos movimentos e ações de composição, combinação e separação dos quatro elementos – úmido, seco, quente e frio.

3. O mito não se importava com contradições, com o fabuloso e o incompreensível, não só porque esses eram traços próprios da narrativa mítica, como também porque a confiança e a crença no mito vinham da autoridade religiosa do narrador.
A Filosofia, ao contrário, não admite contradições, fabulação e coisas incompreensíveis, mas exige que a explicação seja coerente, lógica e racional; além disso, a autoridade da explicação não vem da pessoa do filósofo, mas da razão, que é a mesma em todos os seres humanos.

3. Condições históricas para o surgimento da Filosofia

Podemos apontar como principais condições históricas para o surgimento da Filosofia na Grécia:
· As viagens marítimas, que permitiram aos gregos descobrir que os locais que os mitos diziam habitados por deuses e titãs eram, na verdade, habitados por outros seres humanos, e que as regiões dos mares que os mitos diziam habitados por monstros e seres fabulosos não possuíam nem monstros nem seres fabulosos. As viagens produziram o desencantamento ou a desmistificação do mundo, que passou, assim, a exigir uma explicação sobre a sua origem –explicação que o mito já não podia oferecer;
·  a invenção do calendário, que é uma forma de calcular o tempo segundo as estações do ano, as horas do dia, os fatos importantes quês e repetem, revelando, com isso, uma capacidade de abstração nova, ou uma percepção do tempo como algo natural, e não como uma força divina incompreensível;
· a invenção da moeda, que permitiu uma forma de troca que não se realiza como escambo ou em espécie (isto é, coisas trocadas por outras coisas), e sim uma troca abstrata, uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante das coisas diferentes, revelando,portanto, uma nova capacidade de abstração e de generalização;
· o surgimento da vida urbana, com predomínio do comércio e do artesanato, desenvolvendo técnicas de fabricação e de troca e diminuindo o prestígio das famílias da aristocracia proprietária de terras, por quem e para quem os mitos foram criados; além disso, o surgimento de uma classe de comerciantes ricos, que precisava encontrar pontos de poder e prestígio para suplantar o velho poderio da aristocracia de terras e de sangue, fez com que se procurasse o prestígio pelo patrocínio e estimulo às artes, ás técnicas e aos conhecimentos, favorecendo um ambiente onde a Filosofia poderia surgir;
·  a invenção da escrita alfabética, que, como a do calendário e a da moeda, revela a crescimento da capacidade de abstração e de generalização, uma vez que a escrita alfabética ou fonética, diferentemente de outras escritas – como, por exemplo, os hieróglifos dos egípcios ou os ideogramas dos chineses -, supõe que não se represente uma imagem da coisa que está sendo dita, mas que se ofereça um sinal ou signo abstrato (uma palavra) dela.
Além disso, enquanto nas outras escritas, a cada sinal corresponde uma coisa ou idéia, na escrita alfabética ou fonética as letras são independentes e podem ser combinadas de formas variadas em palavras, e estas podem ser distribuídas de formas variadas para exprimir idéias. Ou seja, nas outras escritas,o signo representa a coisa assinalada; na escrita alfabética, a palavra designa uma coisa e exprime uma idéia.
Nas outras escritas, há a tendência de sacralizar os sinais ou os signos ou de lhes dar um caráter mágico (acredita-se que eles são as coisas assinaladas e que neles forças divinas e demoníacas encarnam, de maneira que quem sabe escrever ou usar sinais tem poder sobre as coisas e sobre os outros), enquanto a escrita alfabética é inteiramente leiga, abstrata, racional e usada por todos;
· a invenção da política, que introduz três aspectos novos e decisivos para o nascimento da Filosofia:
1. A idéia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que decide por si mesma o que é melhor para si e como ela definirá suas relações internas. O aspecto legislado e regulado da cidade – da pólis – servirá de modelo para a Filosofia propor o aspecto legislado, regulado e ordenado do mundo como um mundo racional.

2. O surgimento de um espaço público, que faz aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso, diferente daquele que era proferido pelo mito.
Neste, um poeta-vidente, que recebia das deusas ligadas à memória (a deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que guiavam o poeta) uma iluminação misteriosa ou uma revelação sobrenatural, dizia aos homens quais eram as decisões dos deuses que eles deveriam obedecer.
Agora, com a polis, isto é, a cidade política, surge a palavra como direito de cada cidadão de emitir em público sua opinião, discuti-la com os outros, persuadi-los a tomar uma decisão proposta por ele, de tal modo que surge o discurso político como humana compartilhada, como diálogo, discussão e deliberação humana, isto é, como decisão racional e exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa.
A política, valorizando o humano, o pensamento, a discussão, a persuasão e a decisão racional, valorizou a pensamento racional e criou condições para que surgisse o discurso ou a palavra filosófica.

3. A idéia de discussão pública das opiniões e idéias, pois a política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados por seitas secretas dos iniciados em mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário, ser públicos, ensinados, transmitidos, comunicados e discutidos.

A idéia de um pensamento que todos podem compreender e discutir, que todos podem comunicar e transmitir, é fundamental para a Filosofia.
(Características da Filosofia Grega)
... Quando se diz que a Filosofia é grega,o que se quer dizer é que ela possui certas características, apresenta certas formas de pensar e de exprimir os pensamentos, estabelece certas concepções sobre o que sejam a realidade, a razão, a linguagem, a ação, as técnicas, completamente diferentes das de outros povos e outras culturas.
Quando nos acercamos da Filosofia nascente, podemos perceber os principais traços que definem a atividade filosófica na época de seu nascimento:
· tendência à racionalidade, pois os gregos foram os primeiros a definir o ser humano como um animal racional, a considerar que o pensamento e a linguagem definem a razão, que o homem é ser dotado de razão e que a racionalidade é seu traço distintivo em relação a todos os outros seres. Mesmo que a razão humana não possa conhecer tudo, tudo o que ela pode conhecer, conhece plena e verdadeiramente.
A tendência à racionalidade significa que a razão humana ou o pensamento é a condição de todo conhecimento verdadeiro e, por isso mesmo, a própria razão ou o próprio pensamento deve conhecer as leis, regras, princípios e normas de suas operações e de seu exercício correto;
· tendência à argumentação e ao debate para oferecer respostas conclusivas às questões, dificuldades e problemas, de modo que nenhuma solução seja aceita se não houver sido demonstrada, isto é, provada racionalmente em conformidade com os princípios e as regras do pensamento verdadeiro;
· capacidade de generalização, isto é, de mostrar que uma explicação tem validade para muitas coisas diferentes ou para muitos fatos diversos, porque, sob a aparência da diversidade e da variação percebidas pelos órgãos dos sentidos, o pensamento descobre semelhanças e identidades. Essa capacidade racional é a síntese (palavra grega que significa “reunião ou fusão de várias coisas numa união íntima para formar um todo”).
Por exemplo, para meus olhos, meu tato e meu olfato, o gelo é diferente da neblina, que é diferente do vapor de uma chaleira, que é diferente da chuva, que é diferente da correnteza de um rio. No entanto, o pensamento mostra que se trata sempre de um mesmo elemento (a água), que passa por diferentes estados e formas (líquido, sólido, gasoso) em decorrência de causas naturais diferentes (condensação, liquefação, evaporação).
Reunindo semelhanças, o pensamento conclui que se trata de uma mesma coisa que aparece para nossos sentidos de maneiras diferentes e como se fossem, coisas diferentes. O pensamento generaliza, isto é, encontra sob as diferenças a identidade ou a semelhança e reúne os traços semelhantes, realizando uma síntese;
· capacidade de diferenciação, isto é, mostrar que fatos ou coisas que aparecem como iguais ou semelhantes são, na verdade, diferentes, quando examinados pelo pensamento ou pela razão. Essa capacidade racional para compreender diferenças onde parece haver identidade ou semelhança é a análise (palavra grega que significa “ação de desligar e separar, resolução de um todo em suas partes”).

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