quarta-feira, 16 de março de 2011

Ética e Moral: o problema etimológico e semântico dos termos



 Prof. Epitácio Rodrigues

Uma pessoa que decide fazer um estudo sobre a ética, logo de início, se depara com um grande desafio: entender o que é ética e sua relação com a moral. Por isso, o nosso primeiro esforço será no sentido de esclarecer as causas dessa dificuldade e fornecer um referencial que possibilite uma noção básica acerca do assunto.
As razões que estão na origem dessa primeira dificuldade são basicamente três: a questão da etimologia do termo ética e suas nuances; a sua tradução do grego para o latim; e a coexistência das duas formas de grafia da palavra e termos derivados em nossa língua.
O termo ética que nós usamos encontra suas raízes mais remotas na cultura grega e é uma transliteração do adjetivo grego ēthiké, cujo sentido básico é “conforme os costumes”. Este adjetivo deriva de ēthos que possui duas grafias: com epsilon (ε) significa “costume” e com eta (η) significava primeiramente “morada, redil” e era usado para se referir ao habitat dos animais e posteriormente passou a designar a  morada humana e finalmente “a maneira humana de ser” do homem, ou “caráter”.
Essa informação é importante, na medida em que deixar entrever, na dupla grafia do termo ethos um aspecto objetivo, enquanto se refere ao conjunto dos costumes, normas, regras estabelecidas e legitimadas pela sociedade, tendo como fim o bem do ser humano, individual e socialmente; mas também um aspecto subjetivo ou caráter, enquanto conduta ou ação dos indivíduos e sua conformidade com tais costumes e normas, sendo cada ato passível de ser submetido à aprovação ou desaprovação do grupo, de acordo com a conformidade ou não com aquilo que está socialmente estabelecido.
Essas duas dimensões do ethos grego são indispensáveis para se entender o que significa ēthiké, pois, na língua grega agir humano era designado com o termo práxis. Então, o sentido pré-filosófico do agir ético - práxis ēthiké - era basicamente “agir de acordo com os costumes socialmente estabelecidos e legitimados”.

Com o surgimento da racionalidade filosófica, sobretudo a partir de Sócrates, a práxis ēthiké passou por uma grande e acurada análise, na qual se buscava investigar os fundamentos e os fins do agir humano. As discussões suscitadas por Sócrates ganharam espaço considerável nos Diálogos de Platão, seu discípulo. Depois dele, Aristóteles dedicou três estudos especialmente voltados para esse tema: a Ética a Eudemo, a Magna Ética e a Ética a Nicômaco. As meticulosas reflexões de Aristóteles, sobre a práxis ēthiké, além de sistematizar o discurso filosófico sobre o assunto, também imprimiu um novo sentido ao termo ēthiké que, de adjetivo, passou à condição de substantivo, designando o estudo sobre o agir humano: seus fundamentos, os valores que lhe servem de alicerce e as mediações concretas de efetivação desses valores na forma de costumes, normas e leis consagradas pela tradição cultural. 
As mudanças no cenário político da Grécia antiga, com o domínio romano, marcaram uma nova fase da reflexão ética. Os romanos embora tenham dominado os gregos pela força das armas, foram subjugados pela força da cultura grega. Assim, os escravos políticos, tornaram-se mestres da cultura. Nesse sentido, são eloquentes as palavras de Cícero, filósofo romano:

Meu filho, faz um ano que você recebe lições de Crátipo, na própria Atenas. Não tenho dúvidas de que fez extenso cabedal de preceitos e regras de moral fornecidos pela filosofia, porque esteve em uma grande cidade, assessorado por um mestre de grande autoridade e capaz de transmitir a mais elevada ciência. (Dos deveres, 2002: 31)

Essa assimilação da cultura grega pelos romanos gerou a necessidade de comunicar em termos latinos as idéias e os conceitos da filosofia helênica. Foi o próprio Cícero quem traduziu o termo ēthiké (ética) pelo termo latino “mos”, “mores” – “costume” -, reduzindo a noção de ética à ciência ou teoria dos costumes.
Mas a tradução é apenas uma das razões de uma discussão sobre a relação entre ética e moral. De fato, o cristianismo nascente, com uma carga cultural acentuadamente semita, começa a se expandir, assimilando, traduzindo e adaptando muitas das categorias filosóficas à mensagem cristã. Esse período, conhecido como Patrística, foi liderado por homens formados nas letras gregas e romanas e as obras eram produzidas tanto em grego quanto em latim. Com a divisão do império romano e a posterior queda do império romano do ocidente, o latim tornou-se a língua oficial da igreja romana; a reflexão sobre a ética na idade media foi toda elaborada a partir das categorias da teologia cristã, e dos sistemas platônicos e aristotélicos traduzidos para a língua latina. (É um sintoma muito interessante o fato dos grandes mestres, Agostinho e Tomás de Aquino não dominarem o grego). As discussões e linguagem da ética foram desenvolvidas a partir do latim.
O fim da idade média e o advento do renascimento representou uma nova fase nessa questão quando os intelectuais, clérigos e leigos, embalados pela volta aos clássicos gregos, passaram a traduzir os textos direto dos originais, transliterando palavras gregas para exprimir conceitos que, na época precedente, eram expressos em latim. Sem falar que aos poucos os autores foram abandonando o latim como a língua culta e começaram a escrever em seus dialetos. A convivência de termos diferentes para significar uma mesma coisa, numa reflexão que exige um considerável rigor de expressão para ser compreendido adequadamente, via de regra, traz muita confusão na hora de definir o que é cada coisa. Foi o que aconteceu com os conceitos de ética e moral e seus correlatos.
Em suma, podemos dizer que o termo ética, passa de um adjetivo derivado de ethos para um substantivo e que sua tradução para o latim dá inicio a uma dificuldade que perdurará até os nossos dias. Esse problema é conhecido como o problema etimológico.
As colocações apresentadas tiveram apenas o objetivo de resenhar a história da dificuldade e fornecer um subsídio necessário para a continuação da discussão.

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