terça-feira, 7 de junho de 2011

O RACIONALISMO E O EMPIRISMO



A partir dessa intuição[1] primeira (a existência do ser que pensa), que é indubitável, Descartes distingue os diversos tipos de idéias, percebendo que algumas são duvidosas e confusas e outras são claras e distintas.


(ARANHA, M. Lúcia A. Arruda & MARTINS, M. Helena P. Filosofando 2ª ed. rev. atual. São Paulo: Moderna, 1993, pp 104-105).

Texto I: O MÉTODO CARTESIANO
Eu estudara um pouco, sendo mais jovem, entre as partes da Filosofia, a Lógica, e, entre as Matemáticas, Análise dos geômetras e a Álgebra, três artes ou ciências que pareciam dever contribuir com algo para o meu desígnio. Mas, examinando-as, notei que quanto à Lógica, os seus silogismos e a maior parte de seus outros preceitos servem mais para explicar a outrem as coisas que já se sabem, ou mesmo, como arte de Lúlio, para falar sem julgamento, daquela que se ignoram, do que para aprendê-las. E embora ela contenha, com efeito, uma porção de preceitos muito verdadeiros e muito bons, há todavia tantos outros misturados de permeio que são nocivos, ou supérfluos, que é quase tão difícil separá-los quanto tira uma Diana ou uma Minerva de um bloco de mármore que nem sequer está esboçado. Depois, com respeito á Análise dos Antigos e à Álgebra dos modernos, além de se estenderem apenas a matérias muito abstratas, e de não parecerem de nenhum uso, a primeira permanece sempre tão adstrita à consideração das figuras, que não pode exercitar o entendimento sem fatigar muito a imaginação; e esteve-se de tal forma sujeito, na segunda, a certas regras e certas cifras, que se fez dela uma arte confusa e obscura que embaraça o espírito (inteligência), em lugar de uma ciência que o cultiva. Por esta causa, pensei ser mister procurar algum outro método que, compreendendo as vantagens desses três, fosse isento de seus defeitos. E, como a multidão de leis fornece amiúde escusas aos vícios, de modo que um Estado é bem melhor dirigido quando, tendo embora muito poucas, são estreitamente cumpridas; assim, em vez desse grande número de preceitos de que sem compõe a Lógica, julguei que me bastariam os quatro seguintes, desde que tomasse a firme e constante resolução de não deixar uma só vez de observá-los.
O primeiro era o de jamais acolher alguma coisas como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção[2], e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito (inteligência), que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida.
O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolve-las.
O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros.
E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir.
(Descartes, O Discurso do Método, pp.77-78)

Texto II- O COGITO
Suponho, portanto, que todas as coisas que vejo são falsas; persuado–me de que jamais existiu de tudo quanto minha memória referta de mentiras me representa; penso não possuir nenhum sentido; creio que o corpo, a figura, a extensão, o movimento e o lugar são apenas ficções do meu espírito. O que poderá, pois, ser considerado verdadeiro? Talvez nenhuma outra coisa a não ser que nada há no mundo de certo.
Mas que sei eu, se não há nenhuma coisa diferente das que acabo de julgar incertas, da qual não se possa ter a menor dúvida? Não haverá algum Deus, ou alguma outra potência, que me ponha no espírito tais pensamentos? Isso não é necessário; pois talvez seja eu capaz de produzi-los por mim mesmo. Eu então, pelo menos, não serei alguma coisas? Mas já neguei que tivesse qualquer sentido ou qualquer corpo. Hesito no entanto, pois que se segue daí? Serei de tal modo dependente do corpo e dos sentidos que não possa existir sem eles? Mas eu me persuadi de que nada existia no mundo, que não havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, nem corpos alguns; não me persuadi também, portanto, de que eu não existia? Certamente não, eu existia sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou, apenas, pensei alguma coisa. Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso que emprega toda a sua indústria em enganar-me sempre. Não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisto e ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a anuncio ou que a concebo em meu espírito.
Mas não conheço ainda bastante claramente o que sou, eu que estou certo de que sou; de sorte que doravante é preciso que eu atente com todo cuidado, para não tomar imprudentemente alguma outra coisa por mim, e assim para não equivocar-me neste conhecimento que afirmo ser mais certo e mais evidente do que todos os que tive até agora.
...E verifico aqui que o pensamento é um atributo que me pertence; só ele não pode ser separado de mim. Eu sou, eu existo: isto é certo; mas pro quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que eu penso; pois poderia, talvez, ocorrer que, se eu deixasse de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser ou de existir. Nada admito agora que não seja necessariamente verdadeiro: nada sou, pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão, que são termos cuja significação me era anteriormente desconhecida. Ora, eu sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente; mas que coisa? Já o disse: uma coisa que pensa.
(Descartes. Meditações. pp. 266-267. 269)

(ARANHA, M. Lúcia A. Arruda & MARTINS, M. Helena P. Filosofando 2ª ed. rev. atual. São Paulo: Moderna, 1993, pp 105-107)
Texto I - AS IDEIAS EM GERAL E SUA ORIGEM

Todas as ideias derivam da sensação ou reflexão. Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel em branco, desprovida de todos os caracteres, sem nenhuma ideia; como ela será suprida? De onde lhe provém este vasto estoque, que a ativa e ilimitada fantasia do homem pintou nela com uma variedade quase infinita? De onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimento? A isso respondo, numa palavra: da experiência. Todo o nosso conhecimento está nela fundado, e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento. Empregada tanto nos objetos sensíveis externos como nas operações internas de nossas mentes, que são por nós mesmos percebidas e refletidas, nossa observação supre nossos entendimentos com todos os materiais do pensamento. Dessas duas fontes de conhecimento jorram todas as nossas ideias, ou as que possivelmente teremos.
O objeto da sensação é uma fonte das ideias. Primeiro, nossos sentidos, familiarizados com os objetos sensíveis particulares, levam para a mente várias e distintas percepções das coisas, segundo os vários meios pelos quais aqueles objetos os impressionaram. Recebemos, assim, as ideias de amarelo, branco, quente, frio mole, duro, amargo, doce e todas as ideias que denominamos de qualidades sensíveis. Quando digo que os sentidos levam para a mente, entendo com isso que eles retiram dos objetos externos para a mente o que lhes produziu estas percepções. A esta grande fonte da maioria de nossas ideias, bastante dependente de nossos sentidos, dos quais se encaminham para o entendeimento, denomino sensação.
As operações de nossas mentes consistem na outra fonte de ideias. Segundo, a outra fonte pela qual a experiência supre o entendimento com ideias é a percepção das operações de nossa própria mente, que se ocupa das ideias que já lhe pertencem. Tais operações, quando a alma começa   a refletir e a considerar, suprem o entendimento com outra série de ideias que não poderia ser obtida das coisas externas, tais como a percepção, o pensamento, o duvidar, o crer, o raciocinar, o conhecer, o querer e todos os diferentes atos de nossas próprias mentes. Tendo disso consciência, observando esses atos em nós mesmos, nós os incorporamos em nossos entendimentos como ideias  distintas, do mesmo modo que fazemos com os corpos que impressionam nossos sentidos. Toda gente tem esta fonte de ideias completamente em si mesma; e, embora não a tenha sentido como relacionada com os objetos externos, provavelmente ela está e deve propriamente ser chamada de sentido interno. Mas, como denomino a outra de sensação, denomino esta de reflexão: ideias que se dão ao luxo de serem tais apenas quando a mente reflete acerca de suas próprias operações. Na parte seguinte deste discurso, quero que se entenda que a reflexão significa a mente observando suas próprias operações no entendimento. Afirmo que estas duas, a saber, as coisas materiais externas, como objeto da sensação, e as operações de nossas próprias mentes, como objetos de reflexão, são, a meu ver, os únicos dados originais dos quais as ideias derivam.
(John Locke. Ensaio Acerca do Entendimento Humano, pp. 57-58)

(ARANHA, M. Lúcia A. Arruda & MARTINS, M. Helena P. Filosofando 2ª ed. rev. atual. São Paulo: Moderna, 1993, pp. 107)


David Hume: a força do h ábito em nossas idéias

O costume é, pois, o grande guia da vida humana. É o único princípio que torna útil nossa experiência e nos faz esperar, no futuro, um série de eventos semelhantes àqueles que aparecem no passado
Hume

Nascido em Edimburgo, Escócia, David Hume (1711-1776) estudou filosofia, direito e comércio. Realizou diversas viagens a países europeus, como França e Áustria, e ocupou importante posição na diplomacia inglesa. Estabeleceu contatos com grandes pensadores da época, entre eles Adam Smith e Jean-Jacques Rousseau.
Na obra Investigações acerca do entendimento humano, Hume formulou a sua teoria do conhecimento. Dividiu, primeiramente, tudo aquilo que percebemos em impressões e idéias:
·      Impressões referem-se aos dados fornecidos pelos sentidos, como, por exemplo, as impressões visuais, auditivas, táteis;
·      Idéias referem-se às representações mentais (memória, imaginação etc.) derivadas das impressões.
Assim, toda idéia é uma re(a)presentação de alguma impressão. Essa representação pode possuir diferentes graus de fidelidade. Alguém que nunca teve uma impressão visual, um cego de nascença, por exemplo, jamais poderá ter uma idéia de cor, ainda que seja uma idéia não muito fiel. Hume era, portanto, um empirista.
Crítica ao raciocínio indutivo
Conforme vimos anteriormente, o raciocínio indutivo vai do particular para o geral. As conclusões indutivas são produzidas, portanto, pelo seguinte processo mental: partindo de percepções repetidas que nos chegam da experiência sensorial, saltamos para uma conclusão geral, da qual não temos experiência sensorial.
Hume argumenta que a conclusão indutiva, por maior que seja o número de percepções repetidas do mesmo fato, não possui fundamento lógico. Será sempre um salto do raciocínio impulsionado pela crença ou hábito, isto é, as repetidas percepções de um fato nos levam a confiar em que aquilo que se repetiu até hoje irá se repetir amanhã. Assim, por exemplo, cremos que o Sol nascerá amanhã porque até hoje ele sempre nasceu. Mas nada pode garantir essa certeza me termos lógicos.
Para Hume, somente o raciocínio dedutivo utilizado na matemática fundamenta-se numa lógica racional:

As proposições deste gênero podem descobrir-se pela simples operação do pensamento e não dependem de algo existente em alguma parte do universo. Embora nunca tenha havido na natureza um único círculo ou um triângulo, as verdades demonstradas por Euclides conservarão sempre sua certeza e evidência.
HUME, David. Investigações acerca do entendimento humano, p.77

Ao questionar a validade lógica do raciocínio indutivo, o valor da obra de Hume foi deixar um importante problema para os teóricos do conhecimento (epistemologistas). Afinal, é ou não possível partirmos de experiências particulares para chegarmos a conclusões gerais, representadas pelas leis científicas?
Enquanto o senso comum acredita que por meio de observações repetidas, realizadas no passado, podemos justificar nossas expectativas futuras, Hume sustenta que a repetição de um fato não nos permite concluir, em termos lógicos, que ele continuará a repetir-se da mesma forma, indefinidamente. Assim, Hume revela um ceticismo teórico, pois, para ele, o conhecimento científico que ostentava a bandeira da mais pura racionalidade também está ancorado em base não-racionais, como a crença e o hábito intelectual.
Isso significa que, desconfiado das posições arraigadas pelo hábito, o cientista deve apresentar sua teses como probabilidades e não como certezas irrefutáveis. Tal atitude epistemológica, estendida ao convívio social, tornaria os homens mais tolerantes, democráticos e abertos.
(COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia. 16ª ed. reform. e ampl. São Paulo, Saraiva, 2008, pp. 153-154)


[1] “Por intuição entendo não o testemunho mutável dos sentidos ou o juízo falaz (enganoso) de uma imaginação que compõe mal o seu objeto, mas a concepção de um espírito puro e atento, tão fácil e distinta, que nenhuma dúvida resta sobre o que compreendemos.” (Descartes)
[2] A precipitação consiste em julgar antes de se ter chagado à evidência, e a prevenção, na persistência dos prejuízos da infância.
[3] M. García Morente, Fundamentos de filosofia; lições preliminares, p. 177.

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