Por Epitácio
Rodrigues
Professor de Filosofia e escritor
Um dos pilares de sustentação do racismo
é a estética. A crença na superioridade de um suposto grupo étnico sobre outro
não está ancorada somente no discurso de maior capacidade racional ou melhor
qualidade genética, mas também sobre os padrões de beleza assumidos pelo grupo.
Como o racismo não tem uma base consistente que lhe dê sustentação, a estética
acaba ganhando muito peso, na medida em que é algo que mais facilmente pode ser
disseminado no senso comum. Noutras palavras, para justificar uma suposta
superioridade racional e/ou genética faz-se necessário um discurso “maquiado de
científico” complexamente elaborado e nem sempre acessível a todos. Já os
parâmetros de beleza adotados são prontamente assimilados pelo senso comum e
facilmente reforçados pelos meios de comunicação de massa.
Essa consideração é fundamental,
sobretudo quando se leva em conta o fato de o negro brasileiro está numa
configuração estética na qual ele não se sente contemplado. Não por nada os cabelos,
o nariz, os lábios e a cor da pele são partes do corpo muito visadas por quem,
velada ou abertamente, procura ofender ou humilhar uma pessoa simplesmente pelo
fato de ser negra. Essa é uma das razões pelas quais, no Brasil, muitos negros
não querem ser negros. É verdade que nos últimos anos muita gente tem se
declarado oficialmente negro ou pardo. Mas ao que parece, a motivação está
ligada aos possíveis benefícios advindos de políticas públicas de ações
afirmativas voltadas a eles. Não sou contra as políticas de ações afirmativas
destinadas à população negra, pelo contrário, acho que elas estão chegando
muito atrasadas. O que quero chamar a atenção é para a confusão gerada entre declarar-se
oficialmente “preto” ou “pardo” e pensar a si mesma como pessoa negra. São duas
posturas nem sempre equivalentes. Quando perguntamos a alguém que se tenha
declarado “preto”, o que significa ser negro hoje, ele nem sempre saberá
como responder.
As razões para esse fenômeno decorrem de
um complexo processo de diluição da identidade negra num leque cromático que
gerou para o nosso léxico vários termos e conceitos, que mais confundem do que
auxiliam na construção de uma identidade étnica. Termos como “cabra”, “homem de
cor”, “mulato escuro”, “mulato claro”, “moreno escuro”, “moreno claro”, “pardo”
e “afrodescendente”; todos são formas veladas e sutis de fuga de uma identidade
negra, profundamente associada à questões fenotípicas e cromáticas. Essa fuga
da negritude como identidade pessoal encontra sua razão de ser numa consciência,
às vezes clara, às vezes obscura, de que ser negro não parece ser uma coisa
boa. Assim, uso de produtos químicos para alisar os cabelos, cirurgias
plásticas para afinar ou “corrigir” a espessura dos lábios ou o formato de
nariz, para quem tem um certo poder aquisitivo, são procedimentos aos quais se
costuma recorrer para conformar-se ao padrão estético estabelecido.
Frente a esse quadro, pode-se perguntar
o que significa falar consciência negra nas escolas? A quem se destina? Qual o
papel da educação no necessário processo de conscientização da sociedade para a
aceitação e o convívio com outros padrões estéticos. Aqui acredito que a
Filosofia (mas não só ela) pode oferecer um valioso contributo no processo de
construção ou resgate de uma beleza numa perspectiva do negro africano, que, em
última instância, não se destina somente nós, os negros brasileiros, mas a
todos os indivíduos desta sociedade. A contribuição seria sobretudo no processo
de ressignificação do nosso modo de pensar estético. Isso porque somos
herdeiros de um padrão e de um conjunto de valores estéticos que se apresentam
como hegemônicos e unívocos, frente aos quais o negro não só não se reconhece
neles, como também não é reconhecido pelos não-negros. Quando falo em Estética
refiro-me aos padrões e valores estéticos, mas também ao sentimento que eles
suscitam nos indivíduos. Assim, se “o belo é o que agrada”, como afirmara Kant,
o feio, em contrapartida, será o que causa repulsa e aversão. E numa sociedade
onde as características físicas e fenotípicas de uma pessoa não se coadunam ao
que se convencionou ser o belo, é praticamente impossível que ela não sinta em
si mesma a “síndrome do patinho feio”.
A situação problema é a seguinte: como num
país tão plural, ainda predomine uma imagem de beleza tão unívoca? É fato que a
estética brasileira deve se esforçar para ser mais pluriversal, rompendo com
esse monismo estético e partir em busca de uma compreensão da estética na qual
outros padrões também sejam conhecidos, entendidos e considerados. Penso que as
palavras do filósofo e pedagogo, Paulo Freire, ganham força de um imperativo,
quando afirma que “a necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode
ou não deve ser feita a distância de uma rigorosa formação ética sempre ao lado
da estética” (Pedagogia da Autonomia, 1996, p. 32). Assim, temos que sair da
ingênua compreensão de que a questão da beleza é algo meramente subjetivo e
individual, depende de sujeito para sujeito; como também romper com a
equivocada ideia de que a beleza é uma coisa natural. Na verdade, padrões de
beleza são construções culturais e coletivas. Apresentam variações de grupo
para grupo e linhas de semelhança no interior de cada um deles a ponto de se
poder falar em padrões de beleza.
Portanto, penso que alguns passos ainda
precisam ser percorridos. O primeiro deles é o conhecimento do que é a Estética
Africana, algo que vamos aprender com aqueles dos quais herdamos
características fenotípicas, mas que tiveram muitos elementos da sua cultura
suplantada pela tradição cultural europeia. É preciso ir ao lugar
epistemológico no qual encontramos as nossas origens. Outro passo, em parte
consequência do primeiro, mas também de uma postura de reivindicação
sócio-politica, é ampliar os nossos padrões e valores estéticos, saindo desse
monismo rumo a uma compreensão e uma vivência mais pluriversal da estética.
Perfeito!! :)
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