quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

SERÁ QUE NÃO FALTOU BOM SENSO?


Epitácio Rodrigues

Foi na França que um grande filósofo escreveu: “O BOM SENSO é coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensar estar tão bem provido dele, mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costuma desejar tê-lo mais do que o têm [...] não é suficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem" (DESCARTES,1996, p. 65).
Os últimos acontecimentos envolvendo grupos radicais do Islamismo e o jornal francês Charlie Hebdo colocaram em evidência temas como fundamentalismo, terrorismo, tolerância religiosa e liberdade de imprensa. Mas o destaque dado a esses temas vem acompanhado de uma manipulação tendenciosa. Por que digo tendenciosa? Porque o principal meio de divulgação do que está acontecendo é a imprensa, que tem num dos lados do conflito uma das suas formas de existência, o jornal. Por isso, a situação pede que se faça algumas ponderações a respeito do assunto.
A primeira observação diz respeito ao fundamentalismo. O problema pode ser sintetizado no seguinte questionamento: será que existe, de fato, uma religião fundamentalista? Podemos dizer, como sugerem os meios de comunicação, que os seguidores do islã são fundamentalistas? Será que no interior do Cristianismo, religião dominante no Ocidente, não tem um histórico de práticas e posturas fundamentalistas? Noutras palavras, é preciso delinear uma compreensão de fundamentalismo religioso, visando dirimir a consolidação de atitudes preconceituosas em relação a certos grupos étnicos e culturais.
Como já acenamos acima, os meios de comunicação de massa frequentemente apresentam fatos que são caracterizados nos noticiários como fundamentalistas. Quando houve a destruição das torres gêmeas, os muçulmanos foram responsabilizados. Criou-se uma verdadeira aversão a praticamente uma comunidade inteira. Falar em fundamentalismo é frequentemente associado aos radicais muçulmanos. Será que existe uma religião que seja fundamentalista?
Para o sociólogo Anthony Gidenns, o fundamentalismo religioso é a “abordagem assumida por grupos religiosos que exigem a interpretação literal das escrituras ou dos textos fundamentais e acreditam que as doutrinas surgidas a partir dessas leituras devem ser aplicadas a todos os aspectos da vida social, econômica e política” (2005, p.447). Uma característica do fundamentalismo é a defesa da existência de apenas uma visão de mundo correta. Não há, portanto, lembra Gidenns, espaço para ambiguidades ou múltiplas interpretações.
No mesmo sentido o afirma Leonardo Boff, para o qual o fundamentalismo não é uma doutrina, mas uma forma de interpretar e viver a doutrina. A pessoa fundamentalista é aquela que assume de forma literal o texto de certas doutrinas e normas sem considerar o seu sentido e sua dimensão histórica e cultural, exigindo, portanto, uma constante interpretação e atualização, como condição de garantia de conservação da sua verdade original. Em suma, dirá o pensador, que o fundamentalista é aquele que confere um caráter absoluto ao seu ponto de vista.
Na compreensão dos dois pensadores, o fundamentalismo surge mais como uma questão de hermenêutica. Trata-se de uma forma de interpretar os textos tidos como sagrados. Essa interpretação é literal, no sentido de entender o que está escrito, tal qual a letra apresenta. Ademais é também dogmática, na medida em coloca o texto como verdade absoluta e inquestionável.
Para os autores, portanto, o fundamentalismo seria, no campo da interpretação um erro hermenêutico, uma interpretação literal de um dado texto considerado sagrado. Já no campo gnosiológica, um erro dogmático, por considerar como verdade absoluta e inquestionável um texto que tem sempre a tinta humana. Mais também um erro de conduta, visto que assim entendido gera comportamento e posturas que promovem ações radicais, intransigentes e inflexíveis.
O fundamentalismo religioso é sempre, parece-me, reacionário. No sentido que a modernidade e laicização da sociedade é vista como uma ameaça contra a Divindade.
Assim, fica evidente que o fundamentalismo não tem uma estrutura de religião, mas de postura frente aos ensinamentos de uma dada religião. Que sua motivação inicial está de algum modo relacionada, de forma reacionária, aos movimentos da chamada racionalidade moderna, fortemente marcada por uma postura secularizada. Ou seja, frente um movimento ou sociedade que postula a necessidade de explicações racionais e científicas para os fenômenos sociais e naturais, que afirma a historicidade do conhecimento da verdade, os fundamentalistas negam, de certa forma, a historicidade humana, na medida em que negam aos textos tidos como sacros a sua historicidade e sua dependência de contextos históricos e culturais.
O terrorismo, quando vinculado à questão religiosa, é um ódio destinado ao não participante daquela compreensão religiosa do mundo, da vida e da morte ou pós-morte. O terrorismo é uma ação violenta que tem na base uma compreensão violentada da religião.
A tolerância religiosa, uma valor defendido na Modernidade, se configura mais como um respeito ao credo diferente e do seu espaço, uma experiência de alteridade, na qual se reconhece no outro o direito de crer numa realidade transcendente ou imanente, e até mesmo de não professar crença em nenhuma realidade sobre-humana de caráter sagrado ou divino.
O grande problema é que frequentemente os grupos ou comunidades religiosas querem expandir seu jeito de entender a existência como o único autenticamente válido – uma espécie de ontologia fidei: uma compreensão segundo a qual só a sua religião verdadeira, as demaissão reduzidas ao não-ser.
Do outro lado, os meios de comunicação de massa usam, de modo ideológico, o discurso da liberdade de imprensa como um absoluto. A equação é mais ou menos a seguinte: ou a Imprensa goza de liberdade absoluta e irrestrita, ou o Estado é ditador. Ora, a Imprensa, a priori, é um veículo de comunicação cujo papel principal divulgar os fatos e acontecimentos, tendo como norma a verdade e como fim a informação. O problema é que nos esquecemos que aquilo que chamamos genericamente de imprensa é, na verdade, um conjunto de empresas que como todas as demais, objetivam gerar lucros. Assim, nos últimos anos têm-se percebido que esses meios de comunicação frequentemente recorrem ao sensacionalismo e à produção de polêmicas para estimular o consumo de seu produto. Não quero aqui corroborar a ação dos terroristas no que se refere ao ataque à sede do jornal. Pois o que eles fizeram não tem justificativa plausível: os radicais assassinaram algumas pessoas por satirizarem com o profeta Maomé. Por outro lado, os protagonistas dessa ação sabiam que para os seguidores do Islamismo retratar o profeta Maomé é algo proibido e considerado extremamente ofensivo. Por isso, aqueles que fizeram as caricaturas satirizando o profeta sabiam que uma reação violenta nesse nível era não só possível, mas muito provável. Foi um risco que, ainda que se diga ter sido realizado em nome da liberdade de imprensa, na verdade, tinha como motivação vender o jornal usando uma matéria polêmica.
Essa é a questão silenciada: vivemos numa verdadeira crise da Imprensa que é primeiramente gnosiológica, na medida em que ela não divulga fatos, mas interpretações, julgamentos, condenações ou aprovações de fatos. As palavras de Chaui a respeito do jornalismo ganham uma eloquência singular nesse sentido: “rápido, barato, inexato, partidarista, mescla de informações aleatoriamente obtidas e pouco confiáveis, não-investigativo, opinativo ou assertivo, detentor da credibilidade e da plausibilidade, o jornalismo se tornou protagonista da destruição da opinião pública”(2006, p.14). Mais adiante afirma: “no noticiário, o sujeito é o locutor (ou “âncora”) e o repórter, isto é, o sujeito é a TV, enquanto a notícia e seus protagonistas são objetos. Os protagonistas da notícia falam à câmera, dando assim veracidade à televisão como sujeito único do noticiário. Em contrapartida, o locutor (o “âncora”) e o repórter se dirigem a nós, explicando e interpretando o que o protagonista diz, uma vez que este é um objeto – portanto, nada sabe – e a TV, o sujeito – portanto, sabe tudo” (CHAUI, 2006, p. 53).
Uma consequência é que a Imprensa cria “uma verdade” que quando é mentirosa possui efeitos danosos e quase sempre irreparáveis. Uma matéria errada que torna material impresso ou televisivo torna-se material de pesquisa para gerações futuras e perpetua ou faz ficar verdadeira uma interpretação mentirosa, mesmo que de um fato. Penso que, no caso específico do ataque a sede do jornal, fica a indagação: desrespeitar o profeta Maomé, considerado o fundador do Islamismo, não seria um ato de intolerância e de falta de bom senso? E a outra questão que fica é a seguinte: é preciso discutir, ao lado da propalada liberdade de imprensa, a responsabilidade da imprensa.

Referência bibliográfica:
BOFF, Leonardo. Fundamentalismo, Terrorismo, Religião e Paz: desafios para o século XXI. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.
CHAUI, Marilena. Simulacro e poder: uma análise da mídia. São Paulo: Perseu Abramo, 2006
DESCARTES, R. Discurso do método. São Paulo: Nova Cultural, 1996. ( Col Os Pensadores).
GIDDENS, Anthony. Sociologia. 4ª. ed. Porto Alegre: Artmed, 2005.


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