domingo, 8 de janeiro de 2012

O MESMO É O SER E O PENSAR


Epitácio Rodrigues (professor de Filosofia)

Se pudéssemos classificar o ser humano em termos de identidade conceitual por onde deveríamos seguir? O texto que ora apresento é um delírio imaturo e raso, gestado no ócio dominical, mas não me parece de todo infundado. Por isso, peço que leia e o enriqueça.
Quero começar esse diálogo rememorando uma frase do filósofo Parmênides, tomada aqui livremente. Para esse filósofo, “o mesmo é o ser e o pensar”. A identificação do pensamento com a realidade nessa sentença é um convite à reflexão sobre o modo como cada pessoa constrói o seu mundo e a sua própria identidade. Porém, como existe muita divergência a respeito do que é pensar, usarei esse conceito no sentido mais amplo identificando-o às afirmações de Descartes, quando se define como uma coisa pensante (res cogitans):

Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa. O que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que firma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente. Certamente não é pouco se todas essas coisas pertencem à minha natureza” (1996, p. 270)

As palavras do filósofo parecem apontar para um entendimento do pensar como algo mais complexo do que um simples um exercício da razão. Trata-se de uma forma abrangente de entender o mundo, na qual estão envolvidas a razão, a vontade, a imaginação e a sensibilidade humana. Nesse sentido, podemos afirmar que o ser é uma construção do pensar, na medida em que o meu modo de entender o mundo e a mim mesmo cria a minha própria identidade. Por isso, a pergunta “quem sou eu?” só pode ser respondida levando-se em conta o que penso sobre o mim mesmo, visto que sou uma construção teórica estruturada a partir de uma experiência concreta de mundo.
- Quem sou eu? 
- Sou um conceito de mim mesmo. - respondo! 
Porém, uma vez que o conceito é uma construção teórica e existencial, resultante da amálgama de sentidos e significados unificados em torno de uma realidade, cada pessoa cria uma resposta de acordo com as experiências vitais que servem de suporte para a construção conceitual de sua identidade. Assim, algumas pessoas se entendem como portadoras de uma identidade essencial e imutável: são essencialistas. Quem nunca ouviu a frase: “eu sou assim e quem quiser gostar de mim vai ter que me aceitar como eu sou”. Essa postura é profundamente dogmática e, em termos relacionais, intransigente. É um entendimento fechado de si mesmo. Para esses essencialistas, os demais é que devem se adequar a sua identidade, nunca o contrário. Uma boa elucidação dessa forma de entendimento do mundo pode ser encontrada no famoso personagem da mitologia, Procusto (etimologicamente "o esticador"), que moravando numa serra da cidade de Elêusis, distante cerca de 30 km ao noroeste de Atenas, tinha em sua casa uma cama de ferro que media o seu tamanho, na qual ele convidava os hóspedes a se deitarem. Caso o hóspede fosse muito alto e passasse do tamanho da cama, era amputado o excesso ajustando o tamanho da pessoa ao tamanho de sua cama. Quando o hóspede era de pequena estatura, era esticado até se ajustar ao tamanho da cama”.
Uma característica desse conceito essencialista de si mesmo é o egocentrismo, que gera relações interpessoais débeis, a partir da principio: “eu sou o ser, os outros o não ser”. São exemplos eloquentes desse esquema conceitual a relação: europeus conquistadores e índios conquistados, os civilizados e os selvagens.
Outras pessoas, entendem a si mesma e a realidade de uma forma maniqueísta, ou seja, alicerçada sobre dois princípios de poderes equivalentes: o princípio do bem e o princípio do mal. Assim, o mundo, a divindade e as relações interpessoais são vistas como bipolares e contraditórias. Bipolar também é a compreensão de si mesmo. Nas relações interpessoais, as pessoas que estão a sua volta ou são amigas ou inimigas, ou estão do seu lado ou contra. Quem vê o mundo a partir de polaridades torna-se a sua imagem e semelhança. São ambíguas, ora amigas, ora inimigas, ora do lado de alguém, ora contra. Não raro, desenvolvem uma mania de perseguição: "têm sempre alguém conspirando contra ela." Para essas pessoas, criar oposições é  uma conditio sine qua non para o sustento da identidade e do sentido da sua própria existência, pois só se reconhecem na oposição a outrem. Não raro, ignoram que entre os inimigos e amigos situam-se os indiferentes, os colegas, diplomáticos, os egoístas, interesseiros e muitas outras pessoas para quais a sua existência não representa praticamente nada em termos de significados existenciais.
Por fim, existem algumas pessoas que se entendem como uma construção aberta. São os existencialistas. Para estas, a existência é pro-jeto, uma construção constante, aberta e complexa. Para elas, as palavras do filósofo Sartre ganha um eco bem especial:
O homem é antes de mais nada um projeto que se vive subjetivamente[...] nada existe anteriormente a este projeto; e o home será antes de mais nada o que tiver projetado ser [...] quando dizemos que o homem se escolhe a si, queremos dizer que cada um de nós se escolhe a si próprio; mas com isso queremos também dizer que, ao escolher-se a si próprio, ele escolhe todos os homens[...] (p. 94-95)
E mais adiante acrescenta o filósofo:

O que queremos dizer é que um homem nada mais é do que uma série de empreendimentos, que ele é a soma, a organização, o conjunto das relações que constituem esses empreendimentos (p. 109)
Para que desenvolve essa forma de compreensão conceitual do mundo e de si mesma, a liberdade aparece como valor fundamental. A existência surge como um complexo de possibilidades, a partir das quais a escolha inevitável a cada instante é que constrói a identidade, sempre aberta, sempre livre, sempre projeto em construção de si mesmo. Assim, viver é uma postura de constante aprendizado e mudanças, alicerçada na consciência de que o existir precede o ser e que eu sou plenamente no momento em que morro, visto que aí nada mais pode ser acrescentado ao meu ser identitario.
Para terminar esse breve delírio, quero deixar claro que essas compreensões não possuem  caráter absoluto e isolado, falo de compreensão conceitual predominante em cada indivíduo, mas deixando claro que as três formas de auto-entendimento estão presentes em todos nós, em maior ou menor intensidade.

Bibliografia:
SARTRE, Jean Paul. O existencialismo é um Humanismo. In: Sartre: vida e pensamento. São Paulo: Martin Claret, 1998;
DESCARTES, Meditações. In: DESCARTES, Coleção os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
Os pensadores originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito (texto e tradução). 3ª ed. Petrópolis, Vozes: 1999.

Um comentário:

  1. olá!!!
    muito bom o texto, mas acho que minha personalidade vai ficar sendo existencialista:
    "Para estas, a existência é pro-jeto, uma construção constante, aberta e complexa."
    no entanto também concordo com suas palavras onde:
    "mas deixando claro que as três formas de auto-entendimento estão presentes em todos nós, em maior ou menor intensidade."
    no mais um abraço!!!
    fica com Deus!!

    ps: lembra das mensagens que outrora você tinha me recomendado fazer um livro com as mesmas?
    bem... não o fiz, mas montei um blog, onde as escrevi, elas e outras que já fiz depois delas, da uma olhada (vai o link):

    http://jesuseocaminho-geliane.blogspot.com.br/

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