sábado, 2 de julho de 2011

Voltaire e a história como investigação do progesso da cultura



Prof.: Epitácio Rodrigues

A vida François Marie Arouet, cognominado Voltaire (1694-1778), em muitos aspectos se assemelha às suas novelas: doenças, salões, admiradores, sarcasmo e críticas, prisões, amigos, mulheres e intensa produção intelectual. A própria relação desse livre pensador com a história começa de modo mais explícito por volta do ano 1734, quando, inesperadamente, um editor publica o manuscrito Cartas Filosóficas sobre os Ingleses, escrito por Voltaire durante o seu exílio na Inglaterra e no qual exalta a tradicional inimiga do seu país, elogiando a liberdade de expressão dos ingleses e a ausência de perseguição religiosa aos escritores. Ali Thomas Hobbes podia filosofar com uma audácia que na França o teria levado à prisão; John Locke podia elaborar uma teoria do conhecimento que desprezava o sobrenatural e afirmar que o conhecimento é fruto da nossa experiência. Enfim, pensadores e cientistas não eram obrigados a aceitar verdades absolutas.
A publicação do manuscrito tornou Voltaire, sem que ele esperasse, um perigoso crítico dos costumes nacionais. A reação do parlamento francês foi imediata: condenou o livro, considerando-o escandaloso, contrário à religião, à moral e ao respeito devido às autoridades. Como Voltaire já sabia, por experiência própria, que uma das diferenças entre a Inglaterra e a França era que nesta última tinha a Bastilha, temendo ser preso uma segunda vez, resolveu fugir, levando consigo a jovem Emília Breteuil, então marquesa de Châtelet. Ambos se refugiaram no Castelo de Cirey, propriedade da marquesa.
A marquesa de Châtelet era uma mulher de extraordinária inteligência e começou a tecer duras críticas à forma como se escrevia a história. Considerada por ela como um velho almanaque formado por uma grande confusão de pequenos acontecimentos justapostos sem conexão nem seqüência; relatos de batalhas inúteis que nada resolvia, cuja única função era sobrecarregar o espírito de quem os lia, sem porém ilumina-los. Estas considerações encontraram grande sintonia com a visão de Voltaire, para quem o sentido da história não estava num amontoado de acontecimentos, datas e batalhas. Essa forma de escrever a história, segundo ele, era peça pregada aos mortos, na qual se transformava o passado, adequando-o aos desejos de quem escrevia e assim a única finalidade da história era provar que qualquer coisa pode ser provada pela história.
Voltaire, porém, não ficou só na denúncia. Suas críticas o levaram a buscar uma superação desse modo de se fazer história. A primeira coisa a fazer era aplicar a filosofia à história e rastrear, para além do fluxo de eventos políticos, a história da mente humana. Assim, Voltaire empreendeu uma acurada pesquisa sobre a verdadeira história da civilização. Segundo ele, “a história é a narração de fatos verdadeiros” e defende: qualquer certeza que não se submeta a uma demonstração matemática não passa de simples probabilidade. A historia se enquadra nesse gênero. Essa insistência sobre uma exatidão matemática dos fatos volta a ser reclamada quando fala sobre o método como se deve escrever a história no seu tempo, pois se dos historiadores antigos a ênfase estava sobre o estilo, a eloqüência, Voltaire defende uma ampliação no campo de compreensão e maior preocupação com a exatidão dos fatos. Dirá textualmente:

Dos historiadores modernos exigem-se mais detalhes, fatos mais constatados, datas precisas, autoridades, mais atenção aos costumes, às leis, aos usos, ao comércio, às finanças, à agricultura, à população. Passa-se com a história o mesmo que com a matemática e a física: a estrada alongou-se prodigamente. Nos dias de hoje, é mais fácil fazer uma coletânea de jornais do que escrever a história (DICIONÁRIO, p. 275)

Por isso, leu tudo que encontrou sobre o assunto do seu interesse; estudou incontáveis volumes de memórias; escreveu centenas de cartas aos sobreviventes de acontecimentos importantes. Desse período, são considerados estudos preparatórios: História da Rússia, História de Carlos XII, A Era de Luis XIV e A Era de Luis XIII.
Voltaire precisava de um fio condutor, um princípio a partir do qual pudesse unificar os fatos. Nessa busca chega à consciência de que o princípio unificador é a história da cultura. Batalhas, revoluções, conquistadores e conquistados eram fatos comuns a toda história. Por isso, dirá:

Quero escrever uma história, não de guerras, mas da sociedade; e apurar como viviam os homens no seio de suas famílias e quais eram as artes que costumavam cultivar.(...) Meu objetivo é a história da mente humana, e não um mero detalhe de fatos insignificantes; tampouco me preocupo com a história de grandes senhores...; mas quero saber quais os passos pelos quais os homens passaram do barbarismo para a civilização. (VOLTAIRE, apud DURANT, 1996: 218)

O intenso trabalho de Voltaire resultou no monumental Ensaio sobre os Costumes e o Espírito das Nações e sobre os Principais fatos da História, de Carlos magno a Luis XIII. Esse livro é considerado o primeiro grande trabalho histórico moderno. Dentre outras coisas, coloca de lado o direito divino dos reis, e as instituições eclesiásticas dentro do tempo, negando-as como obra direta de Deus. E a própria Europa e o cristianismo aparecem como um detalhe dentro história mais geral da espécie humana, na qual incluía os grandes impérios da China, e outras religiões como o budismo.
Em suma, pode-se dizer que Voltaire, além de elucidar o valor da pesquisa séria e sistemática das fontes, dá um novo impulso no desenvolvimento da história e da filosofia da história, quando traça para aquela um novo campo de abrangência e um novo sentido, deixando de ser crônicas de batalhas e conquistas e torna-se a história do progresso da cultura, que se dá à medida que os homens vão se desenvolvendo pela luz natural da razão. Voltaire rejeita a tese da providência ou presença do sobrenatural; para ele, a condução da história é responsabilidade humana e tem no homem seu único protagonista. Will Durant dirá que “Voltaire produziu a primeira filosofia da história”, na medida em que abandonando as explicações sobrenaturais, expôs de forma sistemática “os fluxos de causação natural no desenvolvimento da mente européia”. (DURANT, 1996: 218).

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