Epitácio
Rodrigues
Foi na França que um grande filósofo escreveu: “O BOM SENSO é coisa do
mundo melhor partilhada, pois cada qual pensar estar tão bem provido dele,
mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costuma
desejar tê-lo mais do que o têm [...] não é suficiente ter o espírito bom, o
principal é aplicá-lo bem" (DESCARTES,1996, p. 65).
Os últimos acontecimentos envolvendo grupos radicais do
Islamismo e o jornal francês Charlie Hebdo colocaram em evidência temas como fundamentalismo,
terrorismo, tolerância religiosa e liberdade de imprensa. Mas o destaque dado a
esses temas vem acompanhado de uma manipulação tendenciosa. Por que digo
tendenciosa? Porque o principal meio de divulgação do que está acontecendo é a imprensa,
que tem num dos lados do conflito uma das suas formas de existência, o jornal.
Por isso, a situação pede que se faça algumas ponderações a respeito do
assunto.
A primeira observação diz respeito ao fundamentalismo. O problema pode
ser sintetizado no seguinte questionamento: será que existe, de fato, uma
religião fundamentalista? Podemos dizer, como sugerem os meios de comunicação,
que os seguidores do islã são fundamentalistas? Será que no interior do Cristianismo,
religião dominante no Ocidente, não tem um histórico de práticas e posturas fundamentalistas?
Noutras palavras, é preciso delinear uma compreensão de fundamentalismo
religioso, visando dirimir a consolidação de atitudes preconceituosas em
relação a certos grupos étnicos e culturais.
Como já acenamos acima, os meios de comunicação de
massa frequentemente apresentam fatos que são caracterizados nos noticiários
como fundamentalistas. Quando houve a destruição das torres gêmeas, os
muçulmanos foram responsabilizados. Criou-se uma verdadeira aversão a
praticamente uma comunidade inteira. Falar em fundamentalismo é frequentemente
associado aos radicais muçulmanos. Será que existe uma religião que seja
fundamentalista?
Para o sociólogo Anthony Gidenns, o fundamentalismo
religioso é a “abordagem assumida por grupos religiosos que exigem a
interpretação literal das escrituras ou dos textos fundamentais e acreditam que
as doutrinas surgidas a partir dessas leituras devem ser aplicadas a todos os
aspectos da vida social, econômica e política” (2005, p.447). Uma
característica do fundamentalismo é a defesa da existência de apenas uma visão
de mundo correta. Não há, portanto, lembra Gidenns, espaço para ambiguidades ou
múltiplas interpretações.
No mesmo sentido o afirma Leonardo Boff, para o qual
o fundamentalismo não é uma doutrina, mas uma forma de interpretar e viver a
doutrina. A pessoa fundamentalista é aquela que assume de forma literal o texto
de certas doutrinas e normas sem considerar o seu sentido e sua dimensão
histórica e cultural, exigindo, portanto, uma constante interpretação e
atualização, como condição de garantia de conservação da sua verdade original.
Em suma, dirá o pensador, que o fundamentalista é aquele que confere um caráter
absoluto ao seu ponto de vista.
Na compreensão dos dois pensadores, o fundamentalismo
surge mais como uma questão de hermenêutica. Trata-se de uma forma de
interpretar os textos tidos como sagrados. Essa interpretação é literal, no
sentido de entender o que está escrito, tal qual a letra apresenta. Ademais é
também dogmática, na medida em coloca o texto como verdade absoluta e
inquestionável.
Para os autores, portanto, o fundamentalismo seria,
no campo da interpretação um erro hermenêutico, uma interpretação literal de um
dado texto considerado sagrado. Já no campo gnosiológica, um erro dogmático,
por considerar como verdade absoluta e inquestionável um texto que tem sempre a
tinta humana. Mais também um erro de conduta, visto que assim entendido gera
comportamento e posturas que promovem ações radicais, intransigentes e
inflexíveis.
O fundamentalismo religioso é sempre, parece-me,
reacionário. No sentido que a modernidade e laicização da sociedade é vista
como uma ameaça contra a Divindade.
Assim, fica evidente que o fundamentalismo não tem
uma estrutura de religião, mas de postura frente aos ensinamentos de uma dada
religião. Que sua motivação inicial está de algum modo relacionada, de forma
reacionária, aos movimentos da chamada racionalidade moderna, fortemente
marcada por uma postura secularizada. Ou seja, frente um movimento ou sociedade
que postula a necessidade de explicações racionais e científicas para os
fenômenos sociais e naturais, que afirma a historicidade do conhecimento da
verdade, os fundamentalistas negam, de certa forma, a historicidade humana, na
medida em que negam aos textos tidos como sacros a sua historicidade e sua
dependência de contextos históricos e culturais.
O terrorismo, quando vinculado à questão religiosa, é
um ódio destinado ao não participante daquela compreensão religiosa do mundo,
da vida e da morte ou pós-morte. O terrorismo é uma ação violenta que tem na
base uma compreensão violentada da religião.
A tolerância religiosa, uma valor defendido na
Modernidade, se configura mais como um respeito ao credo diferente e do seu
espaço, uma experiência de alteridade, na qual se reconhece no outro o direito
de crer numa realidade transcendente ou imanente, e até mesmo de não professar
crença em nenhuma realidade sobre-humana de caráter sagrado ou divino.
O grande problema é que frequentemente os grupos ou
comunidades religiosas querem expandir seu jeito de entender a existência como
o único autenticamente válido – uma espécie de ontologia fidei: uma compreensão segundo a qual só a sua
religião verdadeira, as demaissão reduzidas ao não-ser.
Do outro lado, os meios de comunicação de massa usam,
de modo ideológico, o discurso da liberdade de imprensa como um absoluto. A
equação é mais ou menos a seguinte: ou a Imprensa goza de liberdade absoluta e
irrestrita, ou o Estado é ditador. Ora, a Imprensa, a priori, é um
veículo de comunicação cujo papel principal divulgar os fatos e acontecimentos,
tendo como norma a verdade e como fim a informação. O problema é que nos
esquecemos que aquilo que chamamos genericamente de imprensa é, na verdade, um
conjunto de empresas que como todas as demais, objetivam gerar lucros. Assim,
nos últimos anos têm-se percebido que esses meios de comunicação frequentemente
recorrem ao sensacionalismo e à produção de polêmicas para estimular o consumo
de seu produto. Não quero aqui corroborar a ação dos terroristas no que se
refere ao ataque à sede do jornal. Pois o que eles fizeram não tem
justificativa plausível: os radicais assassinaram algumas pessoas por
satirizarem com o profeta Maomé. Por outro lado, os protagonistas dessa ação
sabiam que para os seguidores do Islamismo retratar o profeta Maomé é algo
proibido e considerado extremamente ofensivo. Por isso, aqueles que fizeram as caricaturas
satirizando o profeta sabiam que uma reação violenta nesse nível era não só
possível, mas muito provável. Foi um risco que, ainda que se diga ter sido
realizado em nome da liberdade de imprensa, na verdade, tinha como motivação
vender o jornal usando uma matéria polêmica.
Essa é a questão silenciada: vivemos numa verdadeira
crise da Imprensa que é primeiramente gnosiológica, na medida em que ela não
divulga fatos, mas interpretações, julgamentos, condenações ou aprovações de
fatos. As palavras de Chaui a respeito do jornalismo ganham uma eloquência
singular nesse sentido: “rápido, barato, inexato, partidarista, mescla de
informações aleatoriamente obtidas e pouco confiáveis, não-investigativo,
opinativo ou assertivo, detentor da credibilidade e da plausibilidade, o
jornalismo se tornou protagonista da destruição da opinião pública”(2006, p.14).
Mais adiante afirma: “no noticiário, o sujeito é o locutor (ou “âncora”) e o
repórter, isto é, o sujeito é a TV, enquanto a notícia e seus protagonistas são
objetos. Os protagonistas da notícia falam à câmera, dando assim veracidade à
televisão como sujeito único do noticiário. Em contrapartida, o locutor (o
“âncora”) e o repórter se dirigem a nós, explicando e interpretando o que o
protagonista diz, uma vez que este é um objeto – portanto, nada sabe – e a TV,
o sujeito – portanto, sabe tudo” (CHAUI, 2006, p. 53).
Uma consequência é que a Imprensa cria “uma verdade”
que quando é mentirosa possui efeitos danosos e quase sempre irreparáveis. Uma
matéria errada que torna material impresso ou televisivo torna-se material de
pesquisa para gerações futuras e perpetua ou faz ficar verdadeira uma
interpretação mentirosa, mesmo que de um fato. Penso que, no caso específico do
ataque a sede do jornal, fica a indagação: desrespeitar o profeta Maomé, considerado o
fundador do Islamismo, não seria um ato de intolerância e de falta de bom
senso? E a outra questão que fica é a seguinte: é preciso discutir, ao lado da
propalada liberdade de imprensa, a responsabilidade da imprensa.
Referência bibliográfica:
BOFF, Leonardo. Fundamentalismo,
Terrorismo, Religião e Paz: desafios para o século XXI. Petrópolis: Editora
Vozes, 2009.
CHAUI, Marilena. Simulacro e poder: uma
análise da mídia. São Paulo: Perseu Abramo, 2006
DESCARTES, R. Discurso do método.
São Paulo: Nova Cultural, 1996. ( Col Os Pensadores).
GIDDENS, Anthony. Sociologia. 4ª.
ed. Porto Alegre: Artmed, 2005.
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