Epitácio Rodrigues
Com o advento
da modernidade houve também uma mudança no paradigma de explicação da
realidade, tendo como referência a filosofia, a ciência e a tecnologia. Esse fenômeno
ficou conhecido como secularização. O
termo deriva do vocábulo latino saeculum,
que denota “mundo, vida terrena” e ressalta o aspecto profano, laico e material em oposição ao aspecto religioso da realidade. A palavra
secularização, originariamente utilizada no campo jurídico para designar a
passagem de um religioso para a vida laica ou a alienação de um bem da Igreja
para o Estado[1], foi incorporada ao
discurso filosófico para designar o processo através do qual a religião,
paulatinamente, perdeu o poder de influência sobre algumas esferas fundamentais
da vida social.
Vale ressaltar
que essa crescente autonomia humana em relação à religião não representa um
desaparecimento da instituição religiosa ou da sua prática. O que se deu foi
mais um fenômeno de subjetivação da experiência religiosa, relegando suas práticas
ao âmbito mais subjetivo e privado.
Historicamente
a secularização se configura como um fenômeno da modernidade que principia como
uma consequência de uma gama de movimentos de ideias e correntes filosóficas,
dentre as quais o racionalismo, que enfatiza a capacidade racional do ser
humano de explicação da realidade; o empirismo, que coloca a experiência –
contato com a realidade através dos sentidos – como a única fonte plausível do conhecimento;
o iluminismo e a defesa da autonomia política, social e cultural em relação à
religião; o niilismo e negação da crença em um absoluto como fundamento
metafísico dos valores éticos estéticos e sociais; o positivismo, que postula a
religião como um estágio primitivo da sociedade e a valorização do método
empírico e experimental como fonte do conhecimento e outras tendências
assumidas pela reflexão filosófica.
A presença da
secularização na sociedade contemporânea pode ser percebida a partir das
esferas do conhecimento, da política e da ética. No campo do conhecimento,
houve o abandono do discurso teológico como base para explicação do mundo e da
realidade humana; na esfera política, deu-se o crescimento do número de estados
que nas suas constituições se autoproclamaram laicos e também o abandono da monarquia
referendada em concepções teocráticas como forma de governo; no campo da ética,
o fortalecimento do discurso dos direitos humanos contribuiu para a
consolidação de uma ética civil fundada no consenso e no contrato social e não
mais em postulados religiosos como a revelação divina e outras referências de
ordem religiosa.
Portanto, falar
em secularização é tematizar um fenômeno da modernidade que engloba um processo de
redução da influência da instituição religiosa, na esfera pública, como fonte
de explicação da realidade, como referência para o governo da sociedade, e,
finalmente, como fundamento dos valores morais e éticos.
Hoje, apesar da
secularização ser um fato inconteste, penso que, por dever de ofício crítico, faz-se oportuno indagar se ela representa um progresso ou um desvio de curso
no processo de autoconstrução da sociedade humana. Antes, porém, de tentar
resenhar uma direção para este questionamento, gostaria de mencionar o fato de
que a secularização, parece-me, é mais presente no Ocidente e entre as
sociedades cristãs. No tocante à questão, percebo um aspecto libertador no
fenômeno da secularização, na medida em que ele pode suscitar um senso de
desconfiança, uma exigência fundamental para que cada crente possa fazer uma análise mais objetiva da sua prática religiosa, diminuindo o risco de tendências acentuadamente dogmáticas que estão na base de posturas fundamentalistas, sectárias e outras formas de extremismos
fiduciais. Além disso, esse senso de desconfiança pode auxiliar na formação de um correto senso de realidade capaz de possibilitar um entendimento de que as organizações ou instituições religiosas são lideradas
por pessoas que não estão acima do bem e do mau e que, portanto, são suscetíveis de falhas. Porém, não é menos verdade que a secularização exacerbada possa obnubilar dimensões fundamentais do ser
humano como a capacidade de transcendência e de teleologia, tornando-o muito
voltado ao imanente e desencadeando, não raro, uma experiência de vazio
existencial. A racionalidade filosófica e a racionalidade técnico-científica
não dão conta de explicar, até o momento, toda a complexidade da existência
humana. Na verdade, elas são tipologias de saberes historicamente construídos
como a religião, arte, o mito e o senso comum etc. Então vale perguntar se a absolutização da
racionalidade filosófica e técnico-científica e consequentemente da
secularização não seria incorrer no mesmo erro daqueles que estavam à frente da
instituição religiosa no passado?
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