Epitácio Rodrigues
Liberdade é
uma palavra que faz parte do nosso uso diário. Mas o conceito expresso por ela,
não raro, causa confusões quanto à sua natureza (O que é a liberdade?), quanto
à sua extensão (é psicológica, social, moral, política), e quanto à sua possibilidade
(é possível uma liberdade real ou ela é apenas um ideal a ser buscado?).
Neste texto,
vamos apresentar uma compreensão mais ou menos consensual da liberdade no
discurso filosófico, seguido de alguns conceitos que negam a liberdade humana e
apresentar um ponto de vista pessoal sobre o assunto.
Quando nos
discursos filosóficos, fala-se em liberdade, abstraindo-se de algumas posições
mais particulares, pode-se entendê-la como a
capacidade humana de poder decidir e agir isento de coações internas ou
externas. Os escolásticos, lembra Mondin, falavam em immunitas a coactione. Como essa coação pode assumir uma
configuração multifacetada, muito cedo se começou a fazer uma tábua tipológica
da liberdade: a liberdade física, que
consiste na ausência de coação física, a liberdade
moral, que se configura como a ausência de pressões ligadas à moral como
determinantes de nossa ação, sejam elas castigos, punições, prêmios etc. Liberdade política, como ausência de
determinismos políticos, liberdade social, isenção de determinismos sociais[1].
Porém, não faltam
aqueles que colocam em dúvida essa compreensão de liberdade ancorando-se ora na noção de
necessidade, ora de fatalismo, ora de contingência. Por necessidade, entende-se um
conjunto de leis causais que regem a totalidade do universo e, como o ser humano
é parte desse universo regido por leis necessitarias superiores à vontade
humana, não haveria espaço para decisões e ações humanas livres.
Os adeptos do fatalismo,
cuja raiz etimológica aponta para fatalis,
fatum, (destino), acreditam ser a vida humana regida por forças transcendentes
e superiores e, portanto, totalmente independentes da nossa vontade.[2]
Para Japiassú e Marcondes, o conceito de fatalismo implica a compreensão
doutrinária, segundo a qual os acontecimentos do universo e humano estão sob um
necessitarismo absoluto, conforme os desígnios do destino. Porém, lembram que a
noção de destino não implica a ideia de causalidade. Ou seja, não é por uma
relação de causa e efeito que as coisas acontecem na vida humana. O ponto
central do conceito de fatalismo é a crença na existência de forças superiores
às humanas que fazem pressão sobre sua vontade de modo irreversível.
Por outro lado, há também aqueles
que negam a submissão do homem a certas leis da natureza, porque esta mesma natureza resulta
do acaso e da contigência. A própria existência humana nada mais
seria do que um feixe de relações construídas de modo aleatório e fugaz, sendo, portanto, impossível
deliberar racionalmente nesse universo caótico.
Sobre a questão
da liberdade, não posso ignorar o fato de que existem
certas regularidades na natureza. Porém, que isso venha negar, no âmbito da
cultura, a possibilidade de o ser humano decidir e agir com isenção de coações
seria um exagero que a própria experiência cotidiana atesta contra. Noutras palavras,
existem sim aspectos da nossa existência que a natureza tem grande poder de
determinação. Não posso mudar, por exemplo, a minha composição genética e nem evitar o fenômeno da morte, já que a morte é um dado natural: todos os
seres que nascem, morrem! Porém, posso antecipar essa experiência, posso criar
condições para retardá-la. O ser humano é um ser cuja existência é uma
construção. Seu mundo não é apenas natural, mas humano, ou seja, um feixe de
convenções significados criados por ele e aceitos com tais. Vivemos num mundo
da cultura, onde vários elementos da natureza são transformados para satisfazer
às nossas aspirações. Noutras palavras, existe um espaço da existência no qual a
possibilidade de decidir e agir são um fato. Assim, defendo que há uma
liberdade. Situada, mas liberdade; limitada, mas liberdade.
Portanto, a questão a ser
levantada não diz respeito à possibilidade, natureza ou extensão da liberdade,
visto que os maiores adversários da liberdade humana, não são o determinismo ou
o fatalismo, mas a crença fatalista e a crença determinista, ou seja, um jeito
de pensar e crer a natureza que geram no indivíduo o conformismo. Não são poucos
os indivíduos que aceitam ingênua ou covardemente o status quo sob o discurso de que é inútil reagir ou resistir. As coisas
são assim mesmo, não há como mudar. Mas o fato é que o conformismo foi uma criação
cultural que infestou o Ocidente, a partir da escola Estoica. Para os
fundadores dessa escola, como já afirmamos noutra ocasião, o ser humano é apenas um órgão do imenso
organismo chamado Universo. Um ser a mais dentre os seres da natureza. Sua alma
é apenas uma centelha da manifestação da Razão Universal. Por isso, a liberdade
humana consiste em compreender e conformar suas ações e vontade às leis dessa
Razão universal. Ao ser humano cabe aceitar e seguir serenamente e com alegria interior
a Razão Universal. “Segue a natureza que é teu guia” – diziam eles. Epitecto,
filósofo estoico, afirma: “até hoje não houve coisa alguma que me trouxesse
impedimento ou coação. Por quê? Porque sempre dispus minha vontade segundo a
Vontade de Deus. Quer Deus que eu tenha febre? também eu quero”. Assim, o ideal
de liberdade se resume em compreender as inexoráveis leis que regem o universo, segundo Razão Universal e colocar-se em harmonia com ela, numa atitude
de profunda resignação da vontade.
Para os estoicos, a vida feliz consiste numa disposição da vontade para
aceitar, com serenidade, as coisas como elas são. O homem sábio é aquele capaz
de viver a apatheia - apatia, no sentido filosófico estoico -, isto é, a indiferença em relação às emoções e as paixões e, através
dela, alcançar a ataraxia, ou seja, o ideal de serenidade ou imperturbabilidade da alma alcançada quando se
domina ou elimina as paixões e emoções.
A filosofia estoica
influenciou muito a razão ocidental, uma vez que seu discurso foi adotado por teólogos e
filósofos cristãos, por causa da apologia estoica à resignação e ao
sofrimento como caminhos para a perfeição. Afirmações tão comuns como: “é
vontade de Deus”, “foi Deus que quis assim” ou “devemos aceitar, pois tudo é
vontade de Deus” são construtos históricos que ecoam essa influência estoica. É
claro que a verdadeira mensagem do cristianismo não sugere a resignação, mas
paz ativa.
Em suma, penso que devemos
sim advogar, com base racional, a existência de uma liberdade humana, enquanto
poder de decidir e agir isento de coações. Sendo para isso necessário um conhecimento
e um exame das possibilidades reais e concretas para a decisão e a ação. Penso também que essas teorias
que negam a liberdade humana são, em última instância, formas veladas de con-formismo. Pessoas
que, por medo de decidir movidas pela indignação, assumem a resignação: o “abstém
e suporta” dos estoicos.
Bibliografia
referida no texto:
Dicionário Básico de Filosofia. Hilton
Japiassú e Danilo Marcondes, p.103.
MONDIN,
Battista. O Homem, quem é ele? São Paulo,
paulinas, 1980, pp. 108-109;
CHAUÍ, Marilena.
Iniciação à Filosofia, Ática, 2011,
p.288.
RODRIGUES,
Epitácio. As Escolas Filosóficas no Período do Helenismo. In: filosofiaprofrodrigues.blogspot.com. postado em 15 de set/2010.
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