Epitácio
Rodrigues da Silva
“O problema do saber popular não é se
ele é verdadeiro ou falso, mas a ausência de uma fundamentação mais rigorosa e
consistente. As pessoas não buscam saber o porquê dessas noções, apenas as
reproduzem, porque é assim que pensa o grupo social no qual estão inseridas.”
No uso
cotidiano e vulgar do termo filosofia podemos perceber uma certa
vinculação com a ideia de sabedoria, porém com uma ênfase mais pragmática.
Quando ouvimos, por exemplo, “eu tenho
uma filosofia de vida”, o termo filosofia aqui se refere ao conjunto de
princípios práticos que uma ou mais pessoas se apoiam para conduzir ou nortear
a sua própria vida. Na maioria das vezes, esses princípios possuem um teor
ético e nascem da observação da própria vida, de tal forma que a expressão
filosofia de vida denota mais uma sabedoria de vida traduzida em preceitos,
provérbios ou adágios curtos, conservados pela tradição popular e nem sempre
refletido adequadamente. Não por nada, muita gente pensa que filosofar é criar
frases bonitas ou provérbios de efeito para divulgar aos outros. Isso é, com
toda certeza, uma noção equivocada e muito distante do que se deve entender por
Filosofia. Mas então qual a diferença entre saber popular e filosofia?
O senso comum e o saber popular
O ser humano
desde que tomou conhecimento de si mesmo como ser no mundo, sente a necessidade
de compreender a realidade que o cerca e para os fatos que fazem parte da vida.
Assim, ao longo da história humana cada sociedade constrói um conjunto de
saberes que expressam uma compreensão da realidade, formada a partir de uma
gama de opiniões, hábitos e formas de pensamentos dos quais os indivíduos se
servem no dia-a-dia, para entender o mundo circundante e orientar a sua própria
vida.
Essa forma de
compreensão da realidade é construída de maneira espontânea, assistemática e
fragmentária, tendo como suporte as vivências cotidianas e a necessidade
premente que temos de apresentar respostas às questões mais imediatas.
Além de
espontâneo, assistemático e fragmentário, o saber popular possui um caráter
anônimo, pois não apresenta explicações assinadas a quem se pode atribuir a
autoria. Trata-se de um corpo de saberes gestado e transmitido, quase que por
osmose, às diversas camadas sociais e gerações diferentes, criando um
verdadeiro patrimônio cognitivo, valorativo e cultural do senso comum e que
constitui a sabedoria popular de um povo. Porém, apesar do seu inquestionável
valor existencial para os indivíduos que fazem parte dessa dada sociedade,
trata-se de um saber relativamente dogmático, superficial, imediatista e
pragmático. Por isso, não há nesse corpo de conhecimento do senso comum a
garantia de que ele apresente suficiente grau de bom senso, devendo, portanto,
ser submetido a uma análise mais criteriosa da sua origem, da sua história e do
seu fundamento.
Da sabedoria popular à sabedoria filosófica
Entre o saber
popular e a Filosofia existe uma relação de desenvolvimento e ruptura. De fato,
a reflexão filosófica, enquanto forma de saber sistemático, rigoroso e radical,
tem como ponto de partida algumas questões existenciais percebidas numa
experiência efêmera, mas elevada às suas bases fundamentais. Nesse sentido,
alguns problemas antropológicos do saber popular e da sapiência filosófica se
identificam, porém há uma ruptura na busca de entendimento e no processo de
construção de respostas a esses mesmos problemas.
O processo de
filosofar exige como condição primeira a adoção consciente e sistemática de uma
atitude de suspeição ou desconfiança em relação aos conhecimentos, fatos,
coisas e valores com os quais nos deparamos cotidianamente. O que se crer,
pensa, ouve e vê não podem ser tomados como autoevidentes e inquestionáveis,
mas colocados a uma certa distância pedagógica. Esse estranhamento ou
desconfiança em relação ao mundo a nossa volta é condição indispensável à
prática da Filosofia. De fato, é impossível adentrar no universo da Filosofia
sem essa ruptura com os conhecimentos prévios, com os pré-conceitos e com os
pré-juízos. Pois o mundo humano é uma construção simbólica feita por nós
mesmos, graças à capacidade que temos de atribuir significações às coisas e
expressar através da linguagem essas significações. Porém, com o passar do
tempo nós mesmos começamos a aceitar essa organização ou criação simbólica da
realidade como natural. Daí a importância de uma pedagógica postura de
afastamento/estranhamento ou desconfiança em relação ao mundo de conceitos, ideias
e imagens mentais que carregamos como verdadeiras e evidentes. Sem isso não é
possível fazer uma desconstrução adequada da sua visão de mundo. Ou seja, se eu
nunca desconfiar do que vejo, do que penso, do que digo, do que faço não
estarei em condições de examiná-lo de fato. Mas, a desconfiança deve ceder
lugar à análise crítica.
Vale lembrar que
crítica em Filosofia é exame racional, sistemático e rigoroso do conhecimento
que temos da realidade. O caminho mais comum para fazer uma análise crítica é a
indagação problematizadora. Na nossa pressa, apressadamente perguntamos e
apressadamente respondemos.
Mas perguntar é
apenas o princípio da busca, faz-se necessário que ela seja transformada em
investigação. Uma busca sistemática e com direção orientada a uma resposta. O
perguntador, para tornar-se um pensador, precisa comprometer-se com a pergunta,
tornando-se um investigador. Se em cada pergunta já está subjacente um direcionamento
da resposta, sem o compromisso da busca não há filosofia. Pois, não é a
pergunta, propriamente dita, a genitora da Filosofia, visto que perguntar é,
como dissemos, próprio do ser humano. Mas, será o tipo de pergunta e o
compromisso rigoroso na busca da resposta. É a relação pergunta - com todos os
elementos acima elucidados - e a busca ou escuta da resposta, que revela o
caráter dialógico da Filosofia.
Ou seja, a
filosofia no seu aspecto global e originário, nasce da necessidade humana de
encontrar ou construir o sentido da sua própria existência, para além das
experiências imediatas e pragmáticas do dia-a-dia. Ela tem, portanto, a
dimensão de busca às respostas mais teleológicas para o que somos, o que
fazemos, o que pensamos, o que dizemos e o que esperamos. Isso, por si só,
explica e justifica a sua razão de ser. Mas isso não significa que quem não
filosofa não tem uma vida com sentido? Afirmar tal coisa seria um contracenso. O
que se explicita aqui é que a Filosofia nasce de um esforço para fundamentar a
nossa própria existência sobre uma base conceitual quando os discursos míticos,
as explicações religiosas e o saber do senso comum se mostram insatisfatórios
aos espíritos mais aguçados e ávidos de uma fundamentação coerente, consistente
e racional da sua própria razão de ser-no-mundo.
Questões para debate:
1.
Qual a importância do saber popular?
2.
Como o saber popular se relaciona com a sabedoria filosófica?
3.
O exercício da reflexão filosófica anula, de forma definitiva, a influência do saber
popular na vida de quem filosofa?
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